Celebração do passado, preocupação com o futuro
BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA PROPÕE REFLEXÕES SOBRE A DEMOCRACIA E O CRESCIMENTO DO BRASIL
Datas redondas costumam inspirar comemorações significativas, seja na vida das pessoas, seja na história de empresas, entidades ou países. Observadas com frieza, essas datas são como quaisquer outras – mais um ano vencido no calendário. Mas elas também podem ser um impulso para reflexões e uma motivação para o desenvolvimento, a mudança ou o crescimento. Ao completar seus 18 anos, a Revista VOTO convida a uma análise cuidadosa da data mais importante de 2022: o bicentenário da Independência do Brasil. Declarada em circunstâncias políticas muito particulares, a separação administrativa da nação até então membro do Reino Unido de Portugal legou, para os dois séculos seguintes, uma história de tradição democrática sempre tensionada. Hoje, temas como soberania, consolidação da democracia, crescimento econômico e bem-estar social são centrais na vida cotidiana dos brasileiros e norteiam o debate sobre o futuro do país.
A nação cuja independência completa 200 anos em 2022 é muito diferente daquela em que o príncipe regente Dom Pedro I protagonizou a sempre lembrada cena do grito do Ipiranga. Na época, aqui havia cerca de 4,7 milhões de pessoas – hoje, segundo o IBGE, somos mais de 214 milhões. Em 1822, a expectativa de vida de um brasileiro era de apenas 25 anos. Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), essa expectativa deve chegar aos 77 anos em 2022. Mais de 90% da população brasileira era analfabeta nas primeiras décadas do século 19 – dados da pesquisa PNAD Contínua mostram que esse percentual foi de 6,6% em 2019.
O PIB e a renda per capita cresceram, embora de forma irregular, e a matriz econômica se transformou: de economia agrária baseada no latifúndio, o país se industrializou e, no mais recente ciclo, impulsiona seu desenvolvimento com a produção de excelência de commodities agrícolas. Em 2022, o Brasil ocupa o 11º lugar entre as maiores economias do mundo. Logo após completar 200 anos de Independência, os brasileiros irão às urnas mais uma vez para escolher seus representantes majoritários e proporcionais – presidente da República, governadores de Estado e parlamentares federais e estaduais. É a coroação de uma longa tradição democrática que se revela pelo voto popular, que ocorreu pela primeira vez ainda em 1532, quando os proprietários de terras e de pessoas escravizadas da pequena Vila São Vicente, a primeira da América Portuguesa, votaram para escolher os administradores locais.
A partir de 1822, as eleições ganharam protagonismo na organização política do país: primeiro, foram criados os cargos de deputados e senadores, com base na experiência internacional, e, a partir da Proclamação da República, a figura do presidente também ganhou centralidade. No século 20, as mulheres conquistaram o direito de votar. Desde então, não sem interrupções causadas por regimes autoritários, o voto tem sido o principal instrumento para a evolução da democracia brasileira. Desde os anos 1990, a tecnologia da urna eletrônica permite que o resultado da votação seja conhecido em horas, apesar das distâncias continentais do Brasil. Atualmente, somos o quarto maior eleitorado do mundo.
Apesar de uma tradição democrática longa, com histórico de eleições sendo realizadas desde os primeiros anos do Brasil-colônia, a democracia brasileira parece instável em algumas ocasiões. Esses 200 anos comemorados agora, explicam, segundo o cientista político Ney Figueiredo, parte da nossa instabilidade. De acordo com ele, José Bonifácio, percebendo o rumo das monarquias da Europa, que se tornavam constitucionais, harmonizou com perspicácia os diversos grupos de interesse da sociedade brasileira da época, formando um acordo para que Dom Pedro não retornasse a Lisboa. A Independência, assim como a posterior Proclamação da República, teria ocorrido sem a participação popular, desencorajando sentimentos como patriotismo e pertencimento. “A nossa formação histórica não favoreceu que a democracia fosse um valor defendido pelo povo, pois os acontecimentos decisivos se deram à sua revelia”, destaca.
POLÍTICA EM MOVIMENTO CONSTANTE
A jovem e inconstante democracia brasileira foi reinventada muitas vezes ao longo dos últimos 200 anos. E a data do bicentenário é oportuna, justamente, para que ela seja revista e aperfeiçoada, mais uma vez. A opinião é do sociólogo e cientista político Antônio Flávio Testa, que considera fundamental um pacote de mudanças estruturais no Estado brasileiro, que possibilite a redefinição do pacto federativo, com o estabelecimento claro das atribuições dos entes federados. Para ele, é preciso que se revise, com clareza, o papel dos estados e municípios, inclusive no repasse de recursos e no controle de gastos. “Seria interessante se, como um marco dos 200 anos da Independência, o Congresso Nacional discutisse um novo pacto federativo de forma séria. Seria um legado importante e positivo”, alerta.
Ainda na opinião de Testa, as eleições de 2022 são fundamentais para estabelecer a importância geoeconômica do Brasil perante o mundo, especialmente em temas sensíveis como a exploração das nossas riquezas naturais, com destaque para a Amazônia. “As eleições serão tensas, pois darão o tom do direcionamento que o Brasil terá nos próximos 20 anos”, afirma. Para além da eleição presidencial, que pautará o debate em torno das grandes questões, o cientista identifica a movimentação dos partidos políticos para se fortalecerem e elegerem as maiores bancadas possíveis como grande fato a ser observado nesse pleito. “Todos querem ter bancadas fortes, para acessar mais recursos e ter mais poder para influenciar as decisões do Executivo. Qualquer que seja o governo, será decisivo ter maioria na Câmara e no Senado”, ressalta.
A nossa formação histórica não favoreceu que a democracia fosse um valor defendido pelo povo, pois os acontecimentos decisivos se deram à sua revelia.
NEY FIGUEIREDO
Cientista Político
As eleições serão tensas, pois darão o tom do direcionamento que o Brasil terá nos próximos 20 anos.
ANTÔNIO FLÁVIO TESTA
Sociólogo e Cientista Político
Uma refundação do pacto federativo também seria útil, segundo Testa, para organizar os papeis e competências de cada um dos poderes constituintes da República. Isso evitaria o que o cientista chamou de “oposição dos tribunais”, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cujas decisões extrapolariam, em algumas ocasiões, as competências estabelecidas na lei para cada um deles. “Até isso demonstra a falha do nosso pacto federativo. O STF atua politicamente, os governadores atuam por si, a federação se enfraquece”, afirma.
Alardeada como uma consequência da imaturidade do processo democrático brasileiro – e, por isso mesmo, etapa incontornável do processo de amadurecimento –, a polarização deve atingir seus níveis máximos na eleição deste ano. Não é a primeira vez que o Brasil tem suas forças políticas polarizadas. Basta lembrar dos ideais desenvolvimentistas, representados por Getúlio Vargas, que se confrontavam diametralmente com a ideologia liberal da UDN. Para ficar em um exemplo apenas, já que polarização política é um traço que acompanha a história brasileira. A disputa extremada entre os polos, porém, não é suficiente para desestabilizar a democracia. Ao contrário, pode fortalecê-la. “A democracia não está em risco. Há, sim, radicais nos dois lados, mas não tão organizados a ponto de desestabilizar as instituições”, aposta Testa.
DESAFIOS ECONÔMICOS DE RAÍZES HISTÓRICAS E SOLUÇÕES COMPLEXAS
O país do futuro, o celeiro do mundo, o avião pronto para decolar. Já faz tempo que expressões como essas buscam definir a economia brasileira, que estaria sempre “quase” pronta para crescer e se modernizar. O crescimento ocorre, de fato, em alguns setores, que se destacam – o maior exemplo disso é o nível de excelência e produtividade conquistado pelo agronegócio desde os anos 1990. Em uma visão de conjunto, no entanto, o Brasil ainda luta para resolver seus gargalos, que geram inconsistências no processo de crescimento econômico, desfavorecendo nosso desempenho diante de outras nações. Fazer reformas estruturais e direcionar os esforços em todas as áreas para a geração de riqueza e de desenvolvimento são os primeiros passos para que o país, finalmente, corresponda às expectativas depositadas sobre si desde o grito da Independência.
Os avanços que já ocorreram, em especial na última década, indicam que o Brasil tem capacidade para melhorar o desempenho da economia, gerando, em última instância, mais riqueza acessível a todos os brasileiros. Para o economista-chefe da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre, Oscar Frank Junior, movimentos como a aprovação do teto de gastos, as reformas trabalhista e da Previdência, além da Lei da Liberdade Econômica e da reformulação da política do BNDES, foram importantes para preparar o país para o crescimento econômico. No entanto, segundo ele, ainda há mais entraves a serem resolvidos, como a urgência nas reformas tributária e administrativa, além de uma desburocratização mais intensa para os setores produtivos e a concessão dos incentivos corretos para que haja um salto educacional, único caminho para uma economia diversificada e sólida. “Teremos mais uma década perdida por problemas estruturais internos e também por questões conjunturais. Precisamos de reformas pró-mercado, pois a experiência internacional mostra que países com maior liberdade econômica são mais desenvolvidos”, assegura Frank.
Para o economista-chefe do Sistema Farsul (Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul), Antônio da Luz, o crescimento da economia impacta diretamente em todos os aspectos da vida no país, pois é somente por meio dele que se pode ter salários, proteção social, saúde, meio ambiente, educação. “Tudo nasce no crescimento econômico. Mas, infelizmente, não temos um debate sério sobre isso no Brasil. Em economia, o tempo é o insumo mais escasso. E estamos perdendo um tempo precioso”, afirma.
Manter com rigor o tripé macroeconômico baseado em câmbio flutuante, controle fiscal e meta de inflação é, de acordo com Luz, a base para uma economia sólida e aberta para o mercado. Avançar em legislação para mais liberdade econômica também é fundamental. Além disso, o economista aponta a urgência de se encarar com afinco a necessidade de reformas – a tributária e a administrativa principalmente – sob pena de ter o crescimento travado por uma cadeia de impostos confusa e ineficiente ou pelo aumento no déficit primário gerado pelas indexações nos salários do funcionalismo.
O que também não ajuda a crescer são as sucessivas crises políticas que o Brasil vem enfrentando. Um ambiente politicamente instável e sem um projeto definido e voltado para o desenvolvimento econômico não inspira confiança para a atração de investimentos e para a boa colocação do país no comércio mundial. “Nosso desafio é crescer em um ambiente democrático, sem rupturas, pois nada funciona a longo prazo sem democracia, sem respeito às liberdades. Precisamos combater tiranias e autocracias. Não há caminho que não seja pela democracia”, ressalta Luz.
O que no passado foi o grande ativo do Brasil Colônia volta a estar no centro do debate sobre o futuro do mundo: a relação entre o crescimento econômico e o meio ambiente. Para o economista Oscar Frank Junior, o país só ganha com o aprimoramento de suas políticas ambientais, permitindo o desenvolvimento da bioeconomia, que explora e ao mesmo tempo preserva a exuberância do nosso ecossistema. “Devemos ser exemplo para o mundo em função de tudo o que temos. É nossa missão liderar esse debate”, destaca Frank.
O agronegócio brasileiro é o retrato bem-sucedido da relação possível entre meio ambiente e desenvolvimento econômico. Para o economista Antônio da Luz, da Farsul, a mais tradicional entidade setorial do país, o Brasil encontrou o seu papel no mundo, que é o de grande fornecedor de alimentos, produzidos com altíssima tecnologia, qualidade e proteção ambiental. O agro gera indústria e serviços, e não é só commodity, como muita gente pensa. “A produção agropecuária é complexa e altamente tecnológica, não acontece sem indústria, sem serviços, sem o conhecimento acadêmico. O Brasil virou país estratégico para o mundo por conta da agricultura e seu entorno”, comenta Luz. Ainda de acordo com ele, para atingir esse nível de excelência, o setor precisou aprender como preservar o meio ambiente – sem a preservação de solos, águas e áreas de mata, o resultado no campo não seria tão expressivo. Os verdadeiros criminosos, porém, mancham a imagem do agro nacional com atividades como desmatamento e garimpo ilegais. “A primeira vítima disso é o próprio agronegócio, pois quem comete crime compete com quem produz de forma legal, e essa competição é desleal. Isso não é o agro brasileiro mais moderno e eficiente. O país tem que rejeitar essas práticas”, dispara.
Nosso desafio é crescer em um ambiente democrático, sem rupturas, pois nada funciona a longo prazo sem democracia, sem respeito às liberdades.
ANTÔNIO DA LUZ
Economista-chefe do Sistema Farsul