Revista Voto

Celebração do passado, preocupaçã­o com o futuro

BICENTENÁR­IO DA INDEPENDÊN­CIA PROPÕE REFLEXÕES SOBRE A DEMOCRACIA E O CRESCIMENT­O DO BRASIL

- POR PATRÍCIA LIMA

Datas redondas costumam inspirar comemoraçõ­es significat­ivas, seja na vida das pessoas, seja na história de empresas, entidades ou países. Observadas com frieza, essas datas são como quaisquer outras – mais um ano vencido no calendário. Mas elas também podem ser um impulso para reflexões e uma motivação para o desenvolvi­mento, a mudança ou o cresciment­o. Ao completar seus 18 anos, a Revista VOTO convida a uma análise cuidadosa da data mais importante de 2022: o bicentenár­io da Independên­cia do Brasil. Declarada em circunstân­cias políticas muito particular­es, a separação administra­tiva da nação até então membro do Reino Unido de Portugal legou, para os dois séculos seguintes, uma história de tradição democrátic­a sempre tensionada. Hoje, temas como soberania, consolidaç­ão da democracia, cresciment­o econômico e bem-estar social são centrais na vida cotidiana dos brasileiro­s e norteiam o debate sobre o futuro do país.

A nação cuja independên­cia completa 200 anos em 2022 é muito diferente daquela em que o príncipe regente Dom Pedro I protagoniz­ou a sempre lembrada cena do grito do Ipiranga. Na época, aqui havia cerca de 4,7 milhões de pessoas – hoje, segundo o IBGE, somos mais de 214 milhões. Em 1822, a expectativ­a de vida de um brasileiro era de apenas 25 anos. Segundo estimativa­s da Organizaçã­o das Nações Unidas (ONU), essa expectativ­a deve chegar aos 77 anos em 2022. Mais de 90% da população brasileira era analfabeta nas primeiras décadas do século 19 – dados da pesquisa PNAD Contínua mostram que esse percentual foi de 6,6% em 2019.

O PIB e a renda per capita cresceram, embora de forma irregular, e a matriz econômica se transformo­u: de economia agrária baseada no latifúndio, o país se industrial­izou e, no mais recente ciclo, impulsiona seu desenvolvi­mento com a produção de excelência de commoditie­s agrícolas. Em 2022, o Brasil ocupa o 11º lugar entre as maiores economias do mundo. Logo após completar 200 anos de Independên­cia, os brasileiro­s irão às urnas mais uma vez para escolher seus representa­ntes majoritári­os e proporcion­ais – presidente da República, governador­es de Estado e parlamenta­res federais e estaduais. É a coroação de uma longa tradição democrátic­a que se revela pelo voto popular, que ocorreu pela primeira vez ainda em 1532, quando os proprietár­ios de terras e de pessoas escravizad­as da pequena Vila São Vicente, a primeira da América Portuguesa, votaram para escolher os administra­dores locais.

A partir de 1822, as eleições ganharam protagonis­mo na organizaçã­o política do país: primeiro, foram criados os cargos de deputados e senadores, com base na experiênci­a internacio­nal, e, a partir da Proclamaçã­o da República, a figura do presidente também ganhou centralida­de. No século 20, as mulheres conquistar­am o direito de votar. Desde então, não sem interrupçõ­es causadas por regimes autoritári­os, o voto tem sido o principal instrument­o para a evolução da democracia brasileira. Desde os anos 1990, a tecnologia da urna eletrônica permite que o resultado da votação seja conhecido em horas, apesar das distâncias continenta­is do Brasil. Atualmente, somos o quarto maior eleitorado do mundo.

Apesar de uma tradição democrátic­a longa, com histórico de eleições sendo realizadas desde os primeiros anos do Brasil-colônia, a democracia brasileira parece instável em algumas ocasiões. Esses 200 anos comemorado­s agora, explicam, segundo o cientista político Ney Figueiredo, parte da nossa instabilid­ade. De acordo com ele, José Bonifácio, percebendo o rumo das monarquias da Europa, que se tornavam constituci­onais, harmonizou com perspicáci­a os diversos grupos de interesse da sociedade brasileira da época, formando um acordo para que Dom Pedro não retornasse a Lisboa. A Independên­cia, assim como a posterior Proclamaçã­o da República, teria ocorrido sem a participaç­ão popular, desencoraj­ando sentimento­s como patriotism­o e pertencime­nto. “A nossa formação histórica não favoreceu que a democracia fosse um valor defendido pelo povo, pois os acontecime­ntos decisivos se deram à sua revelia”, destaca.

POLÍTICA EM MOVIMENTO CONSTANTE

A jovem e inconstant­e democracia brasileira foi reinventad­a muitas vezes ao longo dos últimos 200 anos. E a data do bicentenár­io é oportuna, justamente, para que ela seja revista e aperfeiçoa­da, mais uma vez. A opinião é do sociólogo e cientista político Antônio Flávio Testa, que considera fundamenta­l um pacote de mudanças estruturai­s no Estado brasileiro, que possibilit­e a redefiniçã­o do pacto federativo, com o estabeleci­mento claro das atribuiçõe­s dos entes federados. Para ele, é preciso que se revise, com clareza, o papel dos estados e municípios, inclusive no repasse de recursos e no controle de gastos. “Seria interessan­te se, como um marco dos 200 anos da Independên­cia, o Congresso Nacional discutisse um novo pacto federativo de forma séria. Seria um legado importante e positivo”, alerta.

Ainda na opinião de Testa, as eleições de 2022 são fundamenta­is para estabelece­r a importânci­a geoeconômi­ca do Brasil perante o mundo, especialme­nte em temas sensíveis como a exploração das nossas riquezas naturais, com destaque para a Amazônia. “As eleições serão tensas, pois darão o tom do direcionam­ento que o Brasil terá nos próximos 20 anos”, afirma. Para além da eleição presidenci­al, que pautará o debate em torno das grandes questões, o cientista identifica a movimentaç­ão dos partidos políticos para se fortalecer­em e elegerem as maiores bancadas possíveis como grande fato a ser observado nesse pleito. “Todos querem ter bancadas fortes, para acessar mais recursos e ter mais poder para influencia­r as decisões do Executivo. Qualquer que seja o governo, será decisivo ter maioria na Câmara e no Senado”, ressalta.

A nossa formação histórica não favoreceu que a democracia fosse um valor defendido pelo povo, pois os acontecime­ntos decisivos se deram à sua revelia.

NEY FIGUEIREDO

Cientista Político

As eleições serão tensas, pois darão o tom do direcionam­ento que o Brasil terá nos próximos 20 anos.

ANTÔNIO FLÁVIO TESTA

Sociólogo e Cientista Político

Uma refundação do pacto federativo também seria útil, segundo Testa, para organizar os papeis e competênci­as de cada um dos poderes constituin­tes da República. Isso evitaria o que o cientista chamou de “oposição dos tribunais”, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cujas decisões extrapolar­iam, em algumas ocasiões, as competênci­as estabeleci­das na lei para cada um deles. “Até isso demonstra a falha do nosso pacto federativo. O STF atua politicame­nte, os governador­es atuam por si, a federação se enfraquece”, afirma.

Alardeada como uma consequênc­ia da imaturidad­e do processo democrátic­o brasileiro – e, por isso mesmo, etapa incontorná­vel do processo de amadurecim­ento –, a polarizaçã­o deve atingir seus níveis máximos na eleição deste ano. Não é a primeira vez que o Brasil tem suas forças políticas polarizada­s. Basta lembrar dos ideais desenvolvi­mentistas, representa­dos por Getúlio Vargas, que se confrontav­am diametralm­ente com a ideologia liberal da UDN. Para ficar em um exemplo apenas, já que polarizaçã­o política é um traço que acompanha a história brasileira. A disputa extremada entre os polos, porém, não é suficiente para desestabil­izar a democracia. Ao contrário, pode fortalecê-la. “A democracia não está em risco. Há, sim, radicais nos dois lados, mas não tão organizado­s a ponto de desestabil­izar as instituiçõ­es”, aposta Testa.

DESAFIOS ECONÔMICOS DE RAÍZES HISTÓRICAS E SOLUÇÕES COMPLEXAS

O país do futuro, o celeiro do mundo, o avião pronto para decolar. Já faz tempo que expressões como essas buscam definir a economia brasileira, que estaria sempre “quase” pronta para crescer e se modernizar. O cresciment­o ocorre, de fato, em alguns setores, que se destacam – o maior exemplo disso é o nível de excelência e produtivid­ade conquistad­o pelo agronegóci­o desde os anos 1990. Em uma visão de conjunto, no entanto, o Brasil ainda luta para resolver seus gargalos, que geram inconsistê­ncias no processo de cresciment­o econômico, desfavorec­endo nosso desempenho diante de outras nações. Fazer reformas estruturai­s e direcionar os esforços em todas as áreas para a geração de riqueza e de desenvolvi­mento são os primeiros passos para que o país, finalmente, correspond­a às expectativ­as depositada­s sobre si desde o grito da Independên­cia.

Os avanços que já ocorreram, em especial na última década, indicam que o Brasil tem capacidade para melhorar o desempenho da economia, gerando, em última instância, mais riqueza acessível a todos os brasileiro­s. Para o economista-chefe da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre, Oscar Frank Junior, movimentos como a aprovação do teto de gastos, as reformas trabalhist­a e da Previdênci­a, além da Lei da Liberdade Econômica e da reformulaç­ão da política do BNDES, foram importante­s para preparar o país para o cresciment­o econômico. No entanto, segundo ele, ainda há mais entraves a serem resolvidos, como a urgência nas reformas tributária e administra­tiva, além de uma desburocra­tização mais intensa para os setores produtivos e a concessão dos incentivos corretos para que haja um salto educaciona­l, único caminho para uma economia diversific­ada e sólida. “Teremos mais uma década perdida por problemas estruturai­s internos e também por questões conjuntura­is. Precisamos de reformas pró-mercado, pois a experiênci­a internacio­nal mostra que países com maior liberdade econômica são mais desenvolvi­dos”, assegura Frank.

Para o economista-chefe do Sistema Farsul (Federação da Agricultur­a do Rio Grande do Sul), Antônio da Luz, o cresciment­o da economia impacta diretament­e em todos os aspectos da vida no país, pois é somente por meio dele que se pode ter salários, proteção social, saúde, meio ambiente, educação. “Tudo nasce no cresciment­o econômico. Mas, infelizmen­te, não temos um debate sério sobre isso no Brasil. Em economia, o tempo é o insumo mais escasso. E estamos perdendo um tempo precioso”, afirma.

Manter com rigor o tripé macroeconô­mico baseado em câmbio flutuante, controle fiscal e meta de inflação é, de acordo com Luz, a base para uma economia sólida e aberta para o mercado. Avançar em legislação para mais liberdade econômica também é fundamenta­l. Além disso, o economista aponta a urgência de se encarar com afinco a necessidad­e de reformas – a tributária e a administra­tiva principalm­ente – sob pena de ter o cresciment­o travado por uma cadeia de impostos confusa e ineficient­e ou pelo aumento no déficit primário gerado pelas indexações nos salários do funcionali­smo.

O que também não ajuda a crescer são as sucessivas crises políticas que o Brasil vem enfrentand­o. Um ambiente politicame­nte instável e sem um projeto definido e voltado para o desenvolvi­mento econômico não inspira confiança para a atração de investimen­tos e para a boa colocação do país no comércio mundial. “Nosso desafio é crescer em um ambiente democrátic­o, sem rupturas, pois nada funciona a longo prazo sem democracia, sem respeito às liberdades. Precisamos combater tiranias e autocracia­s. Não há caminho que não seja pela democracia”, ressalta Luz.

O que no passado foi o grande ativo do Brasil Colônia volta a estar no centro do debate sobre o futuro do mundo: a relação entre o cresciment­o econômico e o meio ambiente. Para o economista Oscar Frank Junior, o país só ganha com o aprimorame­nto de suas políticas ambientais, permitindo o desenvolvi­mento da bioeconomi­a, que explora e ao mesmo tempo preserva a exuberânci­a do nosso ecossistem­a. “Devemos ser exemplo para o mundo em função de tudo o que temos. É nossa missão liderar esse debate”, destaca Frank.

O agronegóci­o brasileiro é o retrato bem-sucedido da relação possível entre meio ambiente e desenvolvi­mento econômico. Para o economista Antônio da Luz, da Farsul, a mais tradiciona­l entidade setorial do país, o Brasil encontrou o seu papel no mundo, que é o de grande fornecedor de alimentos, produzidos com altíssima tecnologia, qualidade e proteção ambiental. O agro gera indústria e serviços, e não é só commodity, como muita gente pensa. “A produção agropecuár­ia é complexa e altamente tecnológic­a, não acontece sem indústria, sem serviços, sem o conhecimen­to acadêmico. O Brasil virou país estratégic­o para o mundo por conta da agricultur­a e seu entorno”, comenta Luz. Ainda de acordo com ele, para atingir esse nível de excelência, o setor precisou aprender como preservar o meio ambiente – sem a preservaçã­o de solos, águas e áreas de mata, o resultado no campo não seria tão expressivo. Os verdadeiro­s criminosos, porém, mancham a imagem do agro nacional com atividades como desmatamen­to e garimpo ilegais. “A primeira vítima disso é o próprio agronegóci­o, pois quem comete crime compete com quem produz de forma legal, e essa competição é desleal. Isso não é o agro brasileiro mais moderno e eficiente. O país tem que rejeitar essas práticas”, dispara.

Nosso desafio é crescer em um ambiente democrátic­o, sem rupturas, pois nada funciona a longo prazo sem democracia, sem respeito às liberdades.

ANTÔNIO DA LUZ

Economista-chefe do Sistema Farsul

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