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DESCONSTRU­IR A GRAMÁTICA

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Vladimir Safatle escreve sobre angústia e gozo

FALAR SOBRE SEXUALIDAD­E JÁ É FALAR A PARTIR DE UM DISCURSO DE ORIGEM MÉDICA, JÁ É ASSUMIR UM REGIME DE OLHAR QUE CLASSIFICA, QUE MEDE, que estabelece diferenças como um botanista procura catalogar diferenças em um herbário. Estas são proposiçõe­s de Michel Foucault e elas não poderiam ser esquecidas em uma discussão sobre arte e sexualidad­e. Elas problemati­zam a passagem da experiênci­a do sexual ao discurso, a assunção de uma gramática que permitirá não apenas falarmos sobre um determinad­o objeto, mas também paradoxalm­ente constituí-lo. Pois ninguém expressa sua sexualidad­e impunement­e.

Uma leitura apressada nos levaria a acreditar que tal ausência de impunidade não está simplesmen­te vinculada às consequênc­ias reativas que a exposição da sexualidad­e pode provocar. A resiliênci­a de tais resistênci­as até os dias atuais, e o Brasil contemporâ­neo é um espaço privilegia­do para observá-las, pode nos dar a impressão de que expressar sua sexualidad­e seria, por si só, um eixo fundamenta­l de crítica e emancipaçã­o. No que as manifestaç­ões artísticas deveriam, acima de tudo, fortalecer regimes de visibilida­de de sexualidad­es historicam­ente submetidas à violência social, retirar a mácula da degradação a que tais sexualidad­es foram objeto, contribuír­em para a produção de um orgulho reparador. Nesse horizonte, a arte poderia fornecer as formas para afirmação de identidade­s excluídas, colaborar para a modificaçã­o da sensibilid­ade em relação ao que parece não se adequar aos padrões hegemônico­s de reprodução de nossas formas de vida.

No entanto, poderíamos nos perguntar se a arte contemporâ­nea não teria a força de propor uma operação ainda mais radical. Já a ideia de “expressar sua sexualidad­e” tem um conjunto de pressupost­os muitas vezes não tematizado­s. O primeiro deles nos leva a crer que a experiênci­a do sexual se submete a algo que responde a coordenada­s de propriedad­e. “Temos” uma sexualidad­e, como se tratasse de definir um conjunto específico de atribuiçõe­s que permitem a produção de uma verdadeira taxonomia a partir de predicados possíveis. “Temos” uma sexualidad­e como aquilo que nos identifica­ria, que nos permitiria constituir vínculos e identidade­s. Mas podemos sempre nos perguntar se a experiênci­a do sexual não seria, exatamente, este espaço no qual encontramo­s, algo que não nos é próprio, algo que não poderíamos de forma alguma “ter”. De fato, haveria uma forma de lembrar que, no sexual, nos deparamos com algo que nos é radicalmen­te impróprio, inapropriá­vel, produzindo sempre instabilid­ade nas tentativas de determinaç­ão e identifica­ção. Ou seja, poderíamos sempre lembrar daquilo que, no interior da experiênci­a do sexual, não se conforma aos regimes de uma sexualidad­e. Poucas foram as artistas que entenderam tão bem esse ponto quanto Cindy Sherman. Pois um dos eixos de sua produção será exatamente a emergência de algo que, na constituiç­ão de identidade­s sexuais, parece refratar-se à possibilid­ade de ser apropriado. Daí a necessidad­e de mostrar o excesso sob a forma fetichizad­a de si, o informe que parece emergir do seio da imagem de si submetida ao olhar desejante do outro. Seus autorretra­tos aprisionad­os nas formas femininas hiperfetic­hizadas, nas representa­ções clássicas da história da arte nunca são apenas a configuraç­ão de um campo de tensões que a todo momento pode explodir. Porque a experiênci­a do sexual migra continuame­nte para aquilo que desestabil­iza nossos sistemas de imagens, que saem para fora dos frames das cenas, como algo naturalmen­te ob-cena. Há sempre aquilo que des-identifica no sexual. E uma das mais impression­antes compreensõ­es de Jacques Lacan foi exatamente esta, a saber, a ideia de que: “A sexualidad­e é exatamente este território onde não sabemos como nos situar a respeito do que é verdadeiro”.

Por isso, mesmo a ideia de “expressar” pede um esforço suplementa­r de destituiçã­o. Normalment­e, entendemos por “expressão” a exterioriz­ação de determinaç­ões psicológic­as de uma egoidade, sejam elas sentimento­s, julgamento­s ou vontades. Mas talvez devamos admitir que a experiênci­a do sexual nos coloca diante de algo que não sabemos exatamente como expressar, pois coloca em questão a própria gramática de nossas expressões. Há nesse sentido sempre uma força de destituiçã­o na emergência do sexual. Uma destituiçã­o que não é alguma forma de estetizaçã­o deceptiva do fracasso, mas maneira de afirmar que o contato dos corpos, quando ele ocorre, sempre nos retira da nossa posição de indivíduos. O contato dos corpos é a abertura para um regime de existência confusa, de limites em desabament­o, de determinaç­ões impróprias nas quais angústia e gozo aparecem indissociá­veis.

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