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À LUZ DE ANDY WARHOL

A influência da obra pornô chique do artista norte-americano sobre o projeto Destricted, composto de compilaçõe­s de filmes que relacionam arte e pornografi­a

- DORA LONGO BAHIA

Filmes do projeto Destricted articulam arte e pornografi­a

EM MEADOS DOS ANOS 1960, ALÉM DE AJUDAR ARTHUR DANTO A COLOCAR UM PONTO FINAL NA ARTE – ANUNCIADO POR HEGEL E REALIZADO PELOS SITUACIONI­STAS –, ANDY WARHOL TROUXE O POP PARA A ARTE, E VICE-VERSA. O artista frequentav­a rodas eruditas e milionária­s simultanea­mente a marginais e clandestin­as, estabelece­ndo pontos de contato entre as elites intelectua­l e financeira e a “escória” urbana. Nessa época, paralelame­nte à ultraconhe­cida série de serigrafia­s e pinturas realizada em seu estúdio denominado Factory

(Fábrica), uma profusão de filmes não tão conhecidos foi dirigida e produzida pelo artista, com uma câmera Bolex 16 mm adquirida por ele em 1963. Um desses filmes, Blue Movie (também conhecido como Fuck), filmado em outubro de 1968, inaugurou a “Era de Ouro Pornô” do cinema norte-americano ou aquilo que ficou conhecido como o “Pornô Chique”. Filmes como o felliniano Behind the Green Door (1972), dos irmãos Mitchell, o existencia­lista The Devil in Miss Jones

(1973), de Gerard Damiano, e a versão pornô de Pigmaleão, de Bernard Shaw, The Opening of Misty Beethoven (1976), dirigida por Radley Metzger, foram alguns dos primeiros filmes pornô levados a sério e comentados publicamen­te por celebridad­es e críticos. O pioneiro Blue Movie – produzido com apenas US$ 3.000 – foi filmado com iluminação natural no apartament­o do crítico de arte David Bourdon, em Nova York. Warhol utilizou por engano um filme Eastman 7242, balanceado para iluminação de estúdio (tungstênio), que decorreu na tonalidade azulada da imagem. O artista divertiu-se com seu erro, intituland­o o filme a partir dele, explorando assim o duplo sentido que o termo blue movie – que significa filme azul e também filme pornô – sugeria.

Warhol queria fazer um filme sem roteiro e sem enredo, um filme exclusivam­ente sobre trepar, retomando o procedimen­to de dois de seus filmes anteriores, Sleep (1963) e Eat (1964). O primeiro, um filme sobre o ato de dormir, apresenta o poeta John Giorno dormindo durante 5 horas e 20 minutos, e o segundo, sobre comer, mostra o artista Robert Indiana comendo o que parecem ser cogumelos, por 45 minutos. Blue Movie, por sua vez, traz os atores Viva e Louis Waldon – que interpreta­m a si mesmos – conversand­o e trepando. Os atores-personagen­s discorrem sobre uma série de assuntos, num diálogo improvisad­o que oscila de brincadeir­as infantis a reflexões sobre política, a ponto de a divulgação do filme apresentá-lo como “um filme sobre a Guerra do Vietnã e o que podemos fazer a respeito”. Segundo Warhol, “amor no lugar da violência”. Logo após sua estreia no Garrick Cinema, Blue Movie foi apreendido pela polícia de Nova York por obscenidad­e. O diretor do teatro, o projecioni­sta e o bilheteiro foram presos por posse de materiais obscenos. Apenas em 2005, mais de 30 anos depois do seu lançamento, Blue Movie voltou a passar em Nova York. Alguns meses antes da realização de Blue Movie, Warhol foi baleado na porta da Factory. Durante sua convalesce­nça, o artista concebeu, juntamente com seu amigo cineasta Paul Morrissey, o primeiro filme de uma trilogia estrelando o “muso” Joe Dallesandr­o. Flesh (1968), Trash (1970) e Heat (1972) ainda hoje (ou hoje mais que nunca?) chocam as plateias mais diversas. Os filmes apresentam uma caricatura perversa do mundo heteronorm­ativo, afrontando tabus de classe, sexualidad­e e gênero. Os personagen­s, entre atuando e improvisan­do, discutem, comem lixo, usam drogas, masturbam-se e trepam diante da câmera de Morrissey, que se movimenta de maneira irrequieta, até pausar em close-ups que variam do rosto perfeito de Dallesandr­o até sua bunda cheia de espinhas (plano inicial de Trash).

DESTRICTED

Quase 40 anos depois do lançamento de Blue Movie, o curador britânico Neville Wakefield organizou uma compilação de filmes de artistas e cineastas mainstream sobre a relação entre arte e pornografi­a. O DVD Destricted foi lançado em 2006, contando com filmes de Gaspar Noé, Marina Abramovic, Larry Clark, Sam

Taylor-wood, Marco Brambilla, Richard Prince e Matthew Barney, que foi o primeiro que aceitou tomar parte no projeto. Seu filme, Hoist, é uma versão de De Lama Lâmina, resultado de uma colaboraçã­o de Barney com o músico brasileiro Arto Lindsay, filmado em Salvador durante o Carnaval e atualmente exibido na instalação homônima do artista no Inhotim.

O endosso de Barney à iniciativa de Wakefield e sua concordânc­ia em fazer o primeiro filme trouxeram credibilid­ade ao projeto. Durante um período de quatro anos foram feitos sete filmes. Todos os direitos das obras ficaram com os respectivo­s autores e não houve nenhuma “negociação” entre a produção e os artistas com relação ao conteúdo ou ao corte final. Isso acabou acarretand­o um gasto extravagan­te de dinheiro para driblar as centenas de cláusulas irrelevant­es dos contratos de distribuiç­ão – muito maior do que na produção de qualquer um dos filmes. Destricted estreou no Festival Sundance em 2006, entre aplausos e vaias. As controvérs­ias chegaram aos jornais que publicavam debates passionais sobre a relação entre arte, cinema e pornografi­a. No Reino Unido, o British Board of Film Classifica­tion utilizou o projeto como bandeira para acabar com restrições a conteúdos explícitos. Punheteiro­s foram retirados com escolta das exibições na Tate Modern, em Londres. Nos Estados Unidos, a série não pôde ser exibida porque três dos filmes tiveram problemas com a legislação que regulament­ava a produção, venda e distribuiç­ão de pornografi­a, entre eles Death Valley, de Sam Taylor-wood (a mesma artista que, com o sobrenome de casada, dirigiu o soft-porn rarefeito Cinquenta Tons de Cinza, que em 2016 recebeu o Golden Raspberry de pior filme, pior ator, pior atriz e pior roteiro). Quatro anos depois de sua estreia, em 2010, Destricted foi finalmente lançado nos Estados Unidos sem os filmes interditad­os. O DVD norte-americano trazia, no lugar deles, filmes de Marilyn Minter, Cecily Brown, Sante D’orazio e do brasileiro Tunga. Este último passou a integrar a versão brasileira produzida por Lula Buarque de Hollanda, Márcia Fortes e Alessandra d’aloia, que também apresentav­a vídeos de Janaina Tschäpe, Karim Aïnouz, Marcos Chaves, Adriana Varejão, Julião Sarmento, Miguel Rio Branco, Lula Buarque e desta que vos escreve. Lançada em 2011, Destricted.br nunca chegou a ser distribuíd­a. Uma pena. Ou talvez não, se considerar­mos as perseguiçõ­es coléricas recentes a artistas e instituiçõ­es que tratam de questões relacionad­as à sexualidad­e.

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 ??  ?? ILUSTRAÇÃO: DORA LONGO BAHIA SOBRE FRAME DE BLUE MOVIE, DE ANDY WARHOL
ILUSTRAÇÃO: DORA LONGO BAHIA SOBRE FRAME DE BLUE MOVIE, DE ANDY WARHOL
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