PORNOTERRORISMO E PORNORECICLE
PIROCAS NO MUSEU
No texto Museo, Basura Urbana y Pornografia, o Coiote é citado pelo crítico Paul B. Preciado ao lado de Annie Sprinkle, Diana Junyet Pornoterrorista, entre outros, como autores de obras performativas e audiovisuais que não encontram ainda marcos de inteligibilidade, não se alinham aos critérios de feminismo e parecem cair em um vazio historiográfico, reivindicando novas categorias. Embora já tenham “contracenado” com Diana Junyet Torres, que influenciou toda uma geração queer com sua teoria do “choque como terapia, o horror como estética e o pornoterrorismo como linguagem”, as integrantes do Coiote não se reconhecem como pornoterroristas. “Assim como Diana Torres pensou o pornoterrorismo como um conceito, ele já vinha sendo vivenciado por outros corpos e em outras geografias. Aqui nos encontramos, enquanto Coletivo Coiote, utilizando e reciclando práticas inspiradoras e impulsionadoras, descolonizando conceitos eurocêntricos (como o que fazemos reciclando o Pornoterrorismo em Pornorecicle) e criando novos contextos para a arte contestadora latinameríndia, numa perspectiva sudaka e decolonial”, afirmam. O anarquismo, o movimento negro (e as teorias de Achille Mbembe sobre a suscetibilidade dos corpos sob o capital), a cultura beatnik e o transfeminismo são referenciais. O Pornirecicle, de Bruna Kury, prega a utilização do pornô
Performer carioca mostrou como falar do prazer de forma lúdica e engraçada, destronando a antiga relação entre sexo e culpa
A OBRA DE MÁRCIA X. (1959-2005) É EXTENSA E BEM DOCUMENTADA, EMBORA NEM TODOS OS SEUS TRABA-LHOS TENHAM SIDO REALIZADOS. POR TABU OU PRECONCEITO, ela foi censurada em muitas ocasiões ao longo de sua trajetória, interrompida por um câncer de pulmão aos 45 anos.
Obras da série Fábrica Fallus (1992-2004), de Márcia X.
os motivos da censura estão a nudez e o uso de símbolos religiosos. Depois de sua morte, um fotograma da perfomance-instalação Desenhando com Terços foi retirado da exposição Arte Erótica em 2006, no CCBB-RJ, depois de protestos. A obra consistia em desenhar pênis no chão, usando para isso centenas de terços.
A carreira da artista visual, performer e designer gráfica teve início em 1980, quando ainda se chamava Márcia Pinheiro e começou a usar o humor e o estranhamento para questionar o papel do artista. Ela integrava o coletivo Cuidado Louças, que, com Cozinharte-te (1980), levou uma cozinha ao espaço expositivo do 3º Salão Nacional de Artes Plásticas. Ali os artistas cozinhavam para o público. Outro trabalho dessa época é Chuva de Dinheiro (1983-1985), em parceria com Ana Cavalcanti. Sem aviso prévio, a dupla atirou do alto de um prédio da Avenida Rio Branco, no Centro do Rio, notas enormes de cruzeiros (90 x 1,80 metro), a moeda da época. As duas estavam vestidas com roupas da mesma estampa. Os transeuntes se acotovelaram para recolher as notas. A peripécia foi noticiada pelo Jornal do Brasil. Em 1984, Márcia iniciou colaborações com o poeta e artista Alex Hamburger, com quem viveu num famoso apartamento no Catete e trabalhou até 1991, com performances e ações relâmpagos. Durante a histórica exposição Como Vai Você Geração 80?, no Parque Lage, curada por Marcus de Lontra Costa, Paulo Roberto Leal e Sandra Magger, e que consagrou a chamada “volta à pintura”, Márcia, Alex Hamburger e Aimberê Cesar preferiram um posicionamento alternativo. Em participação extraoficial, ostentaram sua presença com indumentárias e deslocamentos extravagantes nos corredores do palacete.
O X. DA QUESTÃO
O X. de seu nome surgiu em 1985, depois da performance Cellofane Motel Suíte, também em parceria com Hamburger, realizada na Bienal do Livro durante o lançamento do jornal Alguma Poesia. Márcia circulava vestida com uma “não roupa”, que consistia numa capa de plástico preto sobre outra de plástico transparente, pintada com tinta vermelha apenas sobre os seios, a xoxota e o bumbum, enquanto Hamburger lia poesias vestido de homem-sanduíche. Até que ele, numa referência à performance Cut Piece, de Yoko Ono, pegou uma tesoura e começou a cortar o plástico preto revelando a “não roupa” de Márcia, para indignação do público. O happening literário foi parar na primeira página do Jornal do Brasil. Dias depois, no mesmo jornal, a estilista homônima reclamou por meio de um colunista: “Eu visto as pessoas, eu não dispo”.
Naquele período, a artista Márcia sentia-se pressionada a ganhar dinheiro, que não viria por meio de performances, e foi fazer acessórios com o marido. Para não ser confundida com “aquela senhora”, decidiu mudar seu nome para Márcia X. Pinheiro. Posteriormente, simplificou para Márcia X. Em 1987, também em parceria com Alex Hamburger, surgiu a performance relâmpago Tricyclage. Num almoço na casa da mãe de Márcia, o casal performático encontrou os triciclos de sobrinhos da artista. Como estavam encantados com a presença de John Cage para um concerto no Rio de Janeiro, o casal decidiu surpreender o músico e a plateia da Sala Cecília Meireles. Levaram os triciclos esentre
Na pág. ao lado, obra da série Kaminhas Sutrinhas (1995), da Coleção Gilberto Chateaubriand; nesta pág. e na próxima, cenas da performance Pancake (2001)
condidos, invadiram o palco e pedalaram ziguezagueando por longos 5 minutos, enquanto Cage e musicistas, sensíveis ao feito, executavam Winter Music. A dupla renomeou o trabalho para Música para Dois Velocípedes e Pianos. Em 1988, veio sua primeira instalação individual, com a exposição Ícones do Gênero Humano, na galeria de arte do Centro Cultural Candido Mendes. Ali havia todos os elementos de uma exposição profissional: convites, divulgação, galeria, iluminação, livro de visitas, coquetel, exceto obras de arte. Quem compareceu ao vernissage foi fotografado e filmado. O material foi exibido sem edição no dia seguinte na galeria. Em 1992, ela começou a desenvolver sua extensa série intitulada Fábrica Fallus, feita com pênis de plástico comprados em sex shops, acoplados a materiais variados, como bracinhos de bonecas, dentes de cavalo, medalhas de metal, componentes sonoros, tecidos, bijuterias baratas, e assim por diante. O resultado foram obras lúdicas risíveis.
Além de sex shops, Márcia X. frequentava a região de comércio popular conhecida como Saara, de onde trazia brinquedos, badulaques e gadgets. Em 1995, realizou no Espaço Cultural Sérgio Porto a exposição Kaminhas Sutrinhas, em que bonecas peladas sem cabeça aparecem nas mais variadas posições sexuais. Em Papai Noel (1997), dois bonecos movimentam-se juntos, enquanto toca uma música acionada por botão. Em 2000, surgiu a primeira versão de Reino Animal, em que bonecas peladas aparecem de costas sobre bichos de pelúcia, com as pernas despudoradamente abertas. Ao se acionar um botão, todos se movimentam simultaneamente. “Ela infantilizava o universo adulto e erotizava o universo infantil”, diz seu segundo marido, o escultor Ricardo Ventura. “Nessa operação ela sublinhava prática comum da sociedade. Quando tornava explícito esse comportamento, causava estranheza. Por exemplo: muitas meninas pequenas na época se vestiam sob influência da Xuxa.”
Em 2001, ela fez a performance Pancake, na qual submergiu em litros de Leite Moça em espaço expositivo temporário inventado por Ventura em imóvel desabitado e em obras no Rio de Janeiro. Com ele Márcia também fez performances, como Cadeira Careca / Le Chaise Chouve (2004), em que uma chaise longue Le Corbusier de couro de vaca foi barbeada.
“Ela infantilizava o universo adulto e erotizava o universo infantil”, diz o escultor Ricardo Ventura, que foi seu parceiro e segundo marido