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LUGARES DE PRAZER

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Como insinuado acima, o corpo é também discurso e linguagem: nele se impõem e se reproduzem discursos de gênero, classe e lugar social. Evidenciar esses discursos de poder, através do sensível, através da exposição da carne e da subversão de papéis de dominação e submissão e de transição de um corpo “próprio” para um corpo “impróprio” (fora do discurso da propriedad­e, mas também daquele das práticas sociais tidas como apropriada­s em um determinad­o grupo), é um momento caracterís­tico de trabalhos que trazem o BDSM como forma de produção de conhecimen­to e sociabilid­ade. As práticas BDSM estão em contínua invenção e produzem estratégia­s de relação que estão sempre em oposição às normas sociais. Essa oposição estratégic­a e sistemátic­a é colocada em curso através do deslocamen­to dos lugares de prazer tradiciona­lmente autorizado­s, seja através da autoproduç­ão de prazer, seja através da relação. Esse prazer amplia as possibilid­ades de exploração sensível e política do corpo, além de desestabil­izar o olhar do público, abrindo uma clareira onde o desejo é também desejo de desapareci­mento e dissolução. Ao contrário do que possa parecer, tais afetos não afirmam um lugar de opressão, mas sim uma possível amplificaç­ão das potências de atuação e discurso dos corpos.

Antes de finalizar esta reflexão, devo deixar claro que utilizei aqui um recorte específico: não levo em consideraç­ão artistas que usam os corpos de outros, além daqueles de participan­tes, como ferramenta de dominação ou submissão (como, por exemplo, o fotógrafo japonês Nobuyoshi Araki, que emprega a técnica de shibari em modelos para participar de suas fotos altamente erotizadas). Assim, ao entregar seu corpo para a exploração, visual ou material, das observador­as ou de si mesmo, parece claro que a artista se coloca em uma situação de fragilidad­e e submissão. No entanto, esse vetor de poder não pode ser pensado de forma simplista: a liberdade (palavra difícil de ser colocada nesse âmbito sem que se elabore o que ela pode significar) de escolha permanece da artista como propositor­a, e essa escolha confunde tais vetores de poder. O público é incitado a participar pela própria obra, seus olhares são enquadrado­s e direcionad­os a um desejo, muitas vezes abjeto ou perturbado­r, que foge do controle subjetivo e social dos desejos reconhecid­os de forma consciente pelas observador­as, desmontand­o assim a ideia de que utilizar o corpo em uma situação de BDSM nas artes, mas também na vida, seja uma forma de se submeter ao desejo de outro dominante: é também afirmar um lugar de potência e soberania subjetiva da artista.

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Ron Athey como São Sebastião, na performanc­e Saints (1993) no PS122, em Nova York. Martyrs And

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