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SOBRE PALAVRAS SURDAS

- LUANA FORTES

Exposição solicita aspecto político da palavra e resiste a resultados de eleições presidenci­ais no Brasil O ponto de partida da exposição Água Da Palavra/quando Mais Dentro Aflora foi a proposição que a curadora Galciani Neves fez a artistas para traduzirem uma obra da literatura brasileira em um trabalho de arte. Mas diante de “nossos maus tempos políticos”, como descreve Neves em texto curatorial, a coletiva adquiriu um papel de resistênci­a. Em abril de 2018, quando aconteceu sua primeira montagem em Berlim, Dilma Rousseff já havia sido destituída, Marielle Franco assassinad­a e Lula encarcerad­o. Ao chegar, seis meses depois, no Instituto Cultural Adelina, a mostra precisou criar novas raízes diante da iminente, depois efetiva, eleição de Jair Bolsonaro para a Presidênci­a do Brasil. “Aqui a exposição ganha um aspecto de denúncia e até mesmo de militância”, diz Galciani Neves à select. A versão nacional tem mais obras e mais artistas, com Deco Adjiman, Jorge Menna Barreto e Elida Tessler.

“Pode ser muito lírico falar da palavra nas artes visuais e se concentrar nesse processo de criação – como forma, como fatura –, mas acho que pensar na palavra, na pronúncia, na performati­vidade do corpo que elabora esse conteúdo é um importante gesto político”, diz. O trabalho Vermelho Como Palavra Ainda É Uma Cor Fantasma (2018), de Lívia Aquino, recebe o público na vitrine do instituto com a frase escrita em néon: “Menina, nós queremos saber a verdade, pelo amor de Deus, o que este

homem fez com você?” A sentença foi proferida por um general a Lázara, uma menina que foi estuprada por 11 homens na ditadura militar. A frase foi usada em matérias jornalísti­cas para demonstrar a suposta preocupaçã­o do general, mas o trabalho de Aquino denuncia o cinismo da frase, capaz de silenciar Lázara. A artista explicita que, para o entendimen­to da palavra, importa o corpo de quem diz, de quem escuta e do contexto em que ela é dita. A depender da combinação desses elementos, uma palavra pode tornar-se surda e muda.

Jorge Menna Barreto criou tapetes inéditos da série Desleitura­s (2011-2018) para cada trabalho exibido na mostra. Partindo de processos associativ­os entre diferentes palavras, o artista construiu termos que irrompem possibilid­ades de leitura das obras. “Quando viemos pra cá e os problemas políticos se acirraram de uma maneira mais séria, entendi que a exposição precisava de um chão, literalmen­te, uma espécie de pista de pouso”, diz a curadora. Com as ilhas de Menna Barreto é possível caminhar entre os trabalhos, assuntos e mecanismos de tradução, além de pensar em eventuais respostas à eleição de um presidente que ameaça a liberdade e a vida de muitos. A mostra é um manifesto e o texto curatorial de Galciani Neves contém as hashtags #elenão e #mariellepr­esente.

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À esq., Vermelho Como Palavra Ainda É UmaCor Fantasma (2018), néon de Lívia Aquino. Abaixo, Do Discurso Político Brasileiro 16 (2017), fotografia de Ding Musa

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