A LINGUAGEM É O VÍRUS
Poetas de várias gerações foram convidados para compor poemas sobre a situação cotidiana vivida por aqueles que são soropositivos A morte de toda forma só existe em vida, avizinha-se de nós quando vivemos a perda de alguém ou quando estamos doentes. Aqueles que contraíram o vírus causador da Aids no início da pandemia recebiam o diagnóstico como uma sentença de morte.
o tempo que tenho começo a medir
é um fragmento do poema Dias Contados de Marília Garcia, uma entre os 96 poetas que escrevem sobre um dos temas mais urgentes hoje. Se digo urgente é porque paira uma ameaça de suspensão da distribuição do coquetel antirretroviral pelo futuro governo, até agora oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que configuraria um retrocesso radical da política brasileira, uma vez que foi pioneira na quebra da patente do medicamento.
Tente Entender O Que Tento Dizer, o título do livro publicado pela Bazar do Tempo e organizado pelo poeta Ramon Nunes Mello, é retirado da Primeira Carta Para Além dos Muros, de Caio Fernando Abreu, e aproxima os dois autores na produção crítica e poética a partir de uma subjetividade soropositiva.
Poetas de muitas dicções, de várias gerações, gêneros, soropositivos ou não, foram convidados pelo organizador para participar da coletânea na escrita de poemas inéditos sobre ou a partir da situação cotidiana vivida por aqueles que são soropositivos. Os poemas reúnem assim, de modo surpreendente, o que se diz quando antes não se dizia nada. E não se trata de uma súmula do infortúnio, mas de experiências, percepções, sensações, estratégias e humores diante de um mundo em contágio. Ramon insiste que a existência dos coquetéis permitiu que a linguagem fosse o verdadeiro vírus de uma vida que continua, que insiste nas quebradas com usos novos das palavras, diante de uma doença que enfrenta os muros da memória negativa da vergonha e do medo. Estar doente é o estado de personagens clássicos da literatura, como Ivan Ilitch de Liev Tolstói ou o Doente Imaginário de Molière, e a escrita que confronta a morte talvez seja uma das maiores pulsões de vida.