O SUL GLOBAL VAI A BERLIM
OS PROBLEMAS DO CHAMADO SUL GLOBAL ESTARÃO NO CENTRO DA 11a BIENAL DE BERLIM, a ser aberta no verão europeu de 2020. Seus curadores, escolhidos por um comitê de seleção internacional composto de sete membros, acabam de ser anunciados. São eles Lisette Lagnado, Agustín Pérez Rubio, María Berríos e Renata Cervetto.
Brasileira nascida no Congo, Lagnado tem a 27a Bienal de São Paulo no seu extenso currículo, além de uma exposição no Museu Reina Sofía de Madri, curada em parceria com a chilena Berríos, que também é socióloga. Pérez Rubio, espanhol de Valência, vem de quatro anos como diretor artístico do Malba, em Buenos Aires, e teve ali a argentina Cervetto como coordenadora do departamento educacional. No anúncio oficial, a instituição fez questão de identificar a equipe curatorial como feminina, latino-americana e intergeracional. Junto ao anúncio distribuiu fotos dos quatro curadores quando crianças; o menino Rubio aparece com uma peruca da mãe. Na entrevista a seguir, a brasileira da turma conta como o grupo se formou, resume o projeto apresentado e como as violências à cidadania que vivemos inspiram seu trabalho, além de traçar algumas comparações com a Bienal de São Paulo.
select: Como o time curatorial se formou? Quem tomou a iniciativa de reunir o grupo?
Lisette Lagnado: A curadoria, centrada numa figura única, faz parte de uma lógica que me interessa cada vez menos. Aliás, o culto à personalidade é um perfil que sempre me causou desconforto. Preciso de parceirxs e cúmplices, porque sei que a escala do evento, o ritmo frenético, as requisições de cada artista, esse mix de responsabilidades acaba minando a energia amorosa depositada no trabalho. Quando fui contatada por Gabriele Horn, diretora da Bienal, escrevi para María [Berríos], pesquisadora e curadora chilena que está morando na Dinamarca. Juntas fizemos a mostra Desvíos de la Deriva, no Museo Reina Sofía, uma pesquisa voltada para projetos utópicos de artistas-arquitetos contrários à racionalidade preconizada por Le Corbusier. Discutimos iniciativas de vida comunitária e vivências lúdicas que não lograram na América Latina. De repente, chegou o e-mail do Agustín [Pérez Rubio], que também estava na short list da 11ª Bienal de Berlim. Logo no primeiro Skype com ele, ficou claro que, além de um respeito mútuo, nossas diferenças de atuação funcionariam como qualidades produtivas. Ele trouxe a Renata [Cervetto], cujo trabalho conheci quando enviei um artigo sobre a Escola de Artes Visuais do Parque Lage para o livro Agítese Antes de Usar. Desplazamientos educativos, sociales y artísticos en América Latina, que ela editou com Miguel López. Eu quis, desde o início, uma equipe com quem dividir a interlocução, e tive muita sorte, pois é difícil coincidir com o momento exato na vida profissional e afetiva de pessoas dispostas a uma dedicação integral e se mudar para Berlim.
Qual foi o projeto apresentado à Bienal de Berlim?
Enviamos apenas um escopo geral. A opção foi, primeiro, revisar as dez bienais anteriores e compreender o momento atual da cidade de Berlim em relação aos nossos locais de atuação. Não nos interessa partir do zero, mas responder ao convite de uma bienal europeia, dando visibilidade e consistência às questões de um Sul global. Vivemos uma guerra psicológica que dissemina o medo por meio de fake news pelas redes sociais. Como analisar esse povo enfurecido que grita e lincha? O medo é um produto da civilização: pertence ao mundo da luz e à aventura extrauterina.
Como estão desenvolvendo o projeto?
Durante a elaboração do pré-projeto, Agustín e Renata vieram de Buenos Aires e passaram uma temporada no Rio. Ficaram incógnitos em casa e foi uma delícia mergulharmos na minha biblioteca. A apresentação oral do projeto em Berlim foi feita por Agustín e María, e ambos se conheceram pessoalmente naquela ocasião. Foi o ápice da emoção!
Haverá um tema principal? Será uma bienal com forte caráter político?
A bienal, para nós quatro, tem características discursivas e pedagógicas. Não nos interessa fazer uma exposição que poderia acontecer em qualquer instituição. Principalmente, porque Berlim é uma cidade riquíssima em atrações culturais. O desafio é saber levantar um problema que seja pertinente à população e um assunto com o qual temos familiaridade. Nossas pautas foram marcadas por uma sucessão de violências à cida-
dania: o assassinato da Marielle Franco, ainda sem apontar seus criminosos, a história perdida com o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro e, agora, a confirmação da ultradireita no governo do Brasil, com a naturalização de frases de conteúdos hediondos sobre mulheres, populações negras e LGBTQ, o plano de entregar as reservas indígenas ao capital estrangeiro...
Já discutiram nomes de artistas ou coletivos que serão chamados? Pode adiantar alguns nomes?
Nenhum artista ou coletivo foi contatado. Queremos chegar em Berlim e escutar as modulações da vibração local. Isso inclui, por exemplo, detectar quais os temas que ninguém mais aguenta ouvir, porque já foram extensivamente discutidos. Em nossos encontros, debatemos as ondas de extremismo, as massas religiosas, o casamento, o sexo... essas coisas.
Com que orçamento vocês vão trabalhar?
São 3 milhões de euros garantidos pela German Federal Cultural Foundation. Esse orçamento não é destinado apenas à realização de obras comissionadas, mas deve cobrir toda a equipe, a logística da exposição, publicações, marketing etc. Sabemos também que cada edição acaba recebendo um montante adicional, tanto público como privado.
Haverá residências artísticas e seminários, como houve na 27a Bienal de São Paulo?
Não exatamente, ou pelo menos com outra denominação. Doze anos atrás, não havia programas regulares e consistentes de residências internacionais em São Paulo que pudessem promover encontros com uma certa duração. Dentro do contexto conceitual do “como viver junto”, fazia sentido introduzir outros ritmos de produção, deslocar o sujeito de sua cultura. Mas, sim, temos vontade de trazer pessoas para criar sinergias independentes de uma participação pontual na exposição.
Sua Bienal de São Paulo foi duramente criticada no Brasil, enquanto no exterior teve uma repercussão bastante positiva. Além disso, alguns projetos artísticos foram, contra a sua vontade, vetados pela instituição. Você espera ter condições mais favoráveis para trabalhar na Alemanha?
Preciso dizer que, se os catálogos da minha Bienal tivessem saído durante a sua realização, a repercussão não teria sido tão negativa. Afinal, o livro principal só foi lançado dois anos depois, na 28a Bienal, graças ao empenho de Ivo Mesquita. Essa sensação local foi se dissolvendo porque as pessoas tiveram acesso aos textos dos artistas e dos curadores que, no caso da 27BSP, refletiam os desdobramentos do Programa ambiental de Hélio Oiticica, redigido em 1966. Os vetos aos projetos desses artistas que você cita foram decorrentes de um cerceamento à autonomia intelectual da curadoria por conta do sistema presidencial da Fundação Bienal de São Paulo, herdeiro de um funcionamento baseado em representações oficiais com delegações estrangeiras. O caso de Zamora esbarrou na Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, que julgou “perigosa” a proposta de colocar ilhas flutuantes de ervas daninhas no lago do Parque do Ibirapuera, patrimônio tombado. Aconteceu o mesmo com várias propostas trazidas pela Renata Lucas, até que o impasse foi resolvido implantando o projeto dela na Barra Funda – solução que, na minha opinião, deu uma potência maior para o trabalho. Quando assumi a 27BSP, a cobertura jornalística ficava à espreita de cada escândalo, sobretudo depois da manchetização infeliz da notícia de que Cildo Meireles iria repensar sua participação por conta da reeleição do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira no conselho da instituição, apesar de sua condenação por lavagem de dinheiro. Tudo isso atrapalhou um diálogo institucional que foi se tornando cada vez mais tenso. O espetáculo da notícia ofuscou o debate artístico. A Bienal de São Paulo não se emancipou de uma origem elitista e empresarial. Certamente, não terei esse tipo de ingerência em Berlim.
Quais as semelhanças e diferenças entre a Bienal de São Paulo e a Bienal de Berlim?
Por enquanto, só enxergo diferenças. A mais importante consiste no fluxo de visitantes e na gratuidade da entrada, uma conquista de São Paulo desde 2004. Berlim recebe pouco mais de um décimo de público. A outra grande diferença é o grau de radicalidade das propostas. A Bienal de São Paulo está envelhecendo como um museu moderno e se afastando da formação social das periferias urbanas. Ela tem uma missão educativa essencial para tentar compensar a queda de qualidade do Ensino Médio. Quanto às semelhanças, ainda sou incapaz de percebê-las, mas estou atenta. Recebi este convite como uma jornada nova na minha vida.