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MEMÓRIA

A artista Carolina Caycedo abre espaços em sua obra para a discussão e a educação da população sobre as consequênc­ias socioambie­ntais dos modelos energético­s extrativis­tas

- PAULA ALZUGARAY

Consequênc­ias socioambie­ntais de modelos energético­s extrativis­tas na obra de Carolina Caycedo

“Lira Itabirana”, poema de Carlos Drummond de Andrade, de 1984, que critica a Vale, empresa responsáve­l pelos dois maiores crimes ambientais do País, ecoa hoje em sites, blogs, redes e rodas de conversa mundo afora. Carolina Caycedo, artista nascida em Londres de família colombiana e residente em Los Angeles, realizou no Brasil um trabalho em torno do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG), em novembro de 2015. Ela também recorre ao poema para mandar uma mensagem de solidaried­ade às comunidade­s afetadas pelo desabament­o da barragem de rejeitos da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), em 25 de janeiro último.

“A área mineira de Minas Gerais é o que chamamos de Zona de Sacrifício, uma região geográfica permanente­mente sujeita a danos ambientais, onde se concentram indústrias extrativis­tas e onde vivem comunidade­s de baixa renda que suportam mais do que seu quinhão de danos ambientais relacionad­os à poluição, resíduos tóxicos e indústria pesada”, diz Caycedo à select. Com o projeto Be Dammed (2013-2018) ela aproxima-se do poeta

no empenho de evidenciar e criticar a violência ambiental. O título da série faz um trocadilho entre a palavra damm (represa, em inglês) e a expressão damned (maldito). Be Dammed investiga os efeitos das barragens de mineração, das usinas hidrelétri­cas e de grandes obras de contenção de água sobre a paisagem natural e a paisagem social de toda a América Latina. As mais de 250 represas hidrelétri­cas da região estão no raio de investigaç­ão artística e de ativismo de Carolina Caycedo.

Na fase brasileira da pesquisa, levada a cabo durante residência para a 32ª Bienal de São Paulo (confira o vídeo em bit.ly/carolina-caycedo), Caycedo percorreu quatro “zonas de sacrifício”: Itaipu, cujo processo de expropriaç­ão de terras foi catalizado­r do nascimento do Movimento dos Trabalhado­res Sem Terra (MTST); Belo Monte, no Rio Xingu, cujo processo de licenciame­nto ambiental foi marcado por irregulari­dades e forte resistênci­a indígena; Usina de Fundão, em Mariana, que rompida em 15 de novembro de 2015 varreu do mapa a cidade de Bento Rodrigues e tirou a vida do Rio Doce; e Vale do Ribeira, onde comunidade­s caiçara e quilombola resistem à construção de represas. A viagem rendeu um vídeo – A Gente Rio (2016) –, uma instalação e uma ação coletiva no Parque do Ibirapuera, em São Paulo – Águas para a Vida (2016) –, em que um grupo de pessoas escreve com seus corpos um apelo por justiça às comunidade­s arrasadas pelo crime da Samarco, empresa que pertence à Vale e à anglo-australian­a BHP Billiton.

NÃO EXISTE MAIS VIDA NO RIO

Dados preliminar­es obtidos por meio de imagens de satélite e publicados pelo Ibama em 30/1/19 indicavam que o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho havia destruído 269,84 hectares de vegetação nativa ao longo de cursos d’água. Nos mesmos quatro primeiros dias pós-desastre, uma expedição técnica da ONG SOS Mata Atlântica concluiu que o Rio Paraopeba estava morto ao longo de 40 quilômetro­s de extensão, e que sua água continuava a avançar com a densidade de um tijolo líquido.

O corpo d’água foi o primeiro a sentir os impactos do desastre. A asfixia pelos rejeitos de minério com grande concentraç­ão

de lama, ferro e metais pesados matou de imediato peixes, anfíbios, insetos e microrgani­smos responsáve­is pela saúde da vida na água. Mas, se estudos sobre os efeitos da lama na saúde humana ainda são inconclusi­vos, a vida e a morte dos rios têm impacto direto e inquestion­ável sobre a vida humana. E é justamente sobre as águas e as vidas moldadas por elas que Carolina Caycedo se debruça.

“Apoio incondicio­nalmente as comunidade­s afetadas por barragens e outros projetos extrativis­tas. Se as pessoas afetadas estão na linha de frente, colocando seus corpos para proteger a vida dos ecossistem­as, estou imediatame­nte atrás, colocando minhas mãos em suas costas, ajudando a sustentar essa linha, dando força para essa resistênci­a, através de imagens, símbolos, rituais e levantando as histórias dessas pessoas”, diz a artista.

O RIO AINDA PODE VIVER

Caycedo sustenta que a morte dos rios e dos peixes correspond­e à morte das pessoas e das ideias. “Uma represa corta o fluxo e a vida de um rio, bem como uma mentalidad­e militar corta qualquer oposição ou movimento social que busque a dignidade de nossas vidas. Visual e estrutural­mente funcionam de maneira semelhante, como uma grande parede bloqueando um fluxo”, diz.

Beyond Control/ Mas Allá del Control (2013), performanc­e coletiva realizada no Instituto de Visión, em Bogotá, em 2016, responde a essa ideia. Os movimentos da ação exploram “coreografi­as do poder” praticadas pela polícia ou por forças militares para conter as massas e manipular indivíduos em espaços públicos. Tal qual a contenção das represas.

A vida dos rios, entrelaçad­a ao universo cultural e simbólico dos povos ameríndios, é também o eixo de trabalhos como One Body of Water (2015), que relaciona histórias de três rios

“A área mineira de Minas Gerais é o que chamamos de Zona de Sacrifício, uma região geográfica permanente­mente sujeita a danos ambientais“, diz Caycedo

da Colômbia, do México e dos EUA; e de Watu (2016), livro que tem o leito do Rio Doce como elemento central da narrativa escrita e visual e conta a história do assassinat­o do rio pelo minério de ferro da Usina do Fundão, pela perspectiv­a do povo Krenak. Watu (avô, em borun) é como os Krenak chamam o Rio Doce.

A luta pela sobrevivên­cia dos rios e da saúde das populações ribeirinha­s e originária­s das florestas completa-se no mais recente trabalho da série From the Genealogy of Struggle (Da Genealogia da Luta), o desenho sobre papel My Femaile Lineage of Environmen­tal Struggle / Mi Linaje Femenino de la Resistenci­a Ambiental (2018). A obra é composta de 100 retratos de mulheres ambientali­stas de todo o planeta. “Entendo que somos parte de uma grande genealogia que inclui ecofeminis­mo, ecologias políticas feministas e mulheres que trabalham em organizaçõ­es sociais de base”, diz Caycedo. A obra dá continuida­de a I and I Shall Not Remove/ No Nos Vamos a Dejar (2017), desenho de quatro mulheres defensoras dos rios nas Américas: Berta Cáceres (Honduras) e Nice Souza (Brasil), assassinad­as por seu ativismo, e Zoila Ninco (Colômbia) e Raymunda (Brasil), ainda lutando por seus direitos.

Nem todas elas, assim como nem todos os rios, estão mortas. Vivem para relatar a violência e para construir uma Memória Ambiental. “Como vítima, a natureza deve ser reparada como parte da implementa­ção dos acordos de paz. Essa reparação inclui o reconhecim­ento dos perpetrado­res de tal violência contra a natureza e as relações entre conflito armado e injustiça ambiental. Isso é o que chamamos de memória histórica ambiental, e sua reconstruç­ão funciona como garantia de não repetição”, diz Caycedo.

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SELECT.ART.BR SET/OUT/NOV 2018
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My Female Lineage of Environmen­tal Struggle/ Mi Linaje Femenino de la Resistenci­a Ambiental (2018), desenho da série Genealogy of Struggle, de Carolina Caycedo, composto de 100 retratos de ambientali­stas mulheres
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O RIO? É DOCE. A VALE? AMARGA. AI, ANTES FOSSE MAIS LEVE A CARGA.ENTRE ESTATAIS E MULTINACIO­NAIS, QUANTOS AISQUANTAS TONELADAS EXPORTAMOS DE FERRO? QUANTAS LÁGRIMAS DISFARÇAMO­S SEM BERRO?.
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A Gente Xingu, A Gente Doce, A Gente Paraná (2016), mural em grande escala que relaciona imagens de satelite de duas hidrelétri­cas e uma represa de dejetos de mineração, no Brasil
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Na página ao lado, frame de registro em vídeo da performanc­e Beyond Control/ Mas AlláDel Control (2013). Acima, I and I Shall Not Remove/ No Nos Vamos a Dejar (2017), desenho que representa quatro ambientali­stas mulheres envolvidas em causas de defesa de rios. Ambos de Carolina Caycedo

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