NA MATA SUL
Como curador da Usina de Arte, José Rufino provoca artistas, comunidade e até os idealizadores do projeto a pensar sobre o sentido de fazer arte
José Rufino, curador da Usina de Arte, incita os colegas e a comunidade a pensar sobre o sentido da arte
EM MEADOS DE 2015, O ARTISTA VISUAL JOSÉ RUFINO FOI CONVIDADO POR RICARDO E BRUNA PESSOA DE QUEIROZ FILHO A VISITAR A USINA DE SANTA TEREZINHA, DESATIVADA, NO MUNICÍPIO DE ÁGUA PRETA, NA ZONA DA
MATA SUL DE PERNAMBUCO. A ideia era que ele fizesse uma residência artística e criasse um trabalho para a coleção do casal. O fundador da Usina Santa Terezinha havia sido o bisavô de Ricardo, José Pessoa de Queiroz, que por sua vez era sobrinho do presidente Epitácio Pessoa, que governou o Brasil de 1919 a 1922.
Mas, ao verificar os baixos índices sociais da região, cercada de plantações de cana-de-açúcar, como o de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) das escolas, Rufino concluiu que não seria adequado simplesmente fazer uma obra para o jardim de Ricardinho, como o empresário é conhecido pela comunidade. “Então, um dia, eu propus: que tal fazer outro formato de residência de arte e criar algo que possa mobilizar a população com outra configuração de economia?”, conta José Rufino à select. “Como a gente começa?”, respondeu o usineiro e empresário.
Foi assim que o artista paraibano, que também é professor da Universidade Federal da Paraíba, passou a atuar como curador da Usina de Arte, ao lado de Fábio Delduque, idealizador e diretor do Festival da Serrinha, realizado anualmente em Bragança Paulista desde 2002. Nos meandros dessa nova atividade, paralelamente à produção de eventuais obras ali em Água Preta, Rufino passou a desconfiar das próprias concepções sobre arte.
O avô de José Rufino, de quem ele tirou o pseudônimo artístico, também era dono de engenho. Seus pais, entretanto, eram ativistas políticos e foram presos pela ditadura militar brasileira nos anos 1960. A obra Ligas (2015-2016), exibida no antigo hangar da usina, faz referência às Ligas Camponesas, movimento de luta pela reforma agrária no Brasil que surgiu em 1950. O trabalho reúne antigos facões usados para cortar cana, soldados juntos em formatos diversos, e foi feito por Rufino em parceria com Ronaldo Tavares da Silva, que trabalhava na Usina quando ela ainda estava em atividade. Um ano depois de terminada a obra, Silva parou diante dela, cruzou os braços e perguntou a Rufino: “Você não vai tirar isso daqui, não? Vamos fazer outra coisa, isso não funciona mais”. Ligas foi feita para ficar exposta permanentemente naquele espaço e ali está, mas episódios como esse instigaram Rufino a mudar sua forma de criar e expor.
“Naquele momento, a obra desmanchou-se, perdeu o sentido”, conta o artista. “Percebi que não faz sentido fazer uma obra que é apenas escultura ou apenas pintura. Tem de ser sempre uma mobilização.” O artista então passou a implementar essa concepção na Usina de Arte a partir de uma aproximação com o conceito de Arte Útil, formulado pela artista cubana Tania Bruguera e curadores do Queens Museum (NY, EUA), do Van Abbemuseum (Eindhoven, Holanda) e do Grizedale Arts (Coniston, Reino Unido).
OITO PASSOS DA ARTE ÚTIL
Todo artista convidado a realizar uma residência na Usina de Arte é apresentado aos oito predicados da Arte Útil, como: propor novos usos para a arte dentro da sociedade, responder a demandas
“Percebi que não faz sentido fazer uma obra que é apenas escultura ou apenas pintura. Tem que ser sempre uma mobilização”, diz José Rufino
urgentes, operar em uma escala de 1:1 e substituir autores por iniciadores e espectadores por usuários. É claro que nem todos os artistas conseguem ou querem se enquadrar nesses preceitos. Alguns até mesmo apresentam hostilidade diante de qualquer tentativa de relacionar arte com uso. No entanto, como esclarece o próprio site da Arte Útil, “o conceito vai além de sugerir arte como uma ferramenta ou dispositivo. Arte Útil recorre ao pensamento artístico para imaginar, criar e implementar táticas que mudam como nós agimos em sociedade”.
Por enquanto, o convidado que mais se aproximou dos oito predicados foi o pernambucano Paulo Meira, com a Rádio Catimbó, um híbrido de escultura e rádio comunitária. Em 2018, um curso foi ministrado em torno da obra pelo radialista Napoleão Assunção, de Olinda, para adolescentes de cidades vizinhas. “Mesmo depois de terminado, o trabalho continua ali e tem vida própria. Paulo Meira nem precisa saber o que está acontecendo lá agora”, diz Rufino. Outro caso exemplar que se aproxima das proposições da Arte Útil é o Gabinete de Arte, uma iniciativa de Lucineia Maria da Silva e Luciene Maria, direto da comunidade. Lá funciona um restaurante com produtos naturais, loja de artesanato, espaço para ateliês e oficinas, além de ser a sede da coleção de moda Bicho do Vau, também projeto de Lucineia, que pega seu nome emprestado de uma lenda urbana local. O Gabinete participará este ano da feira Fenearte 2019, que acontece, em julho, em Olinda. Além de idealizadora do espaço, Lucineia é gestora e Luciene professora da Escola Municipal Severino Canto, um caso de sucesso do município. O Ideb do colégio foi 5.8 em 2017, representando o maior índice da Zona da Mata Sul. Seis anos antes, o Ideb da escola era 3.8.
“A Usina de Arte está enriquecendo a comunidade com cultura, influenciando na melhora da educação de nossas crianças e dos adultos, como também está trazendo um novo modo de vida”, afirma Luciene à select. O Gabinete parece cumprir os oito preceitos da Arte Útil, conscientemente ou não. “Eu poderia dizer, de forma radical, que isso está acontecendo com mais potência, mais velocidade, com as pessoas da comunidade do que com os artistas que vão até lá”, analisa Rufino.
O curador da Usina vê criticamente na prática artística contemporânea, incluindo a sua própria, uma atitude de “coletor”. “Muitos que têm trabalhos chamados de engajados são ‘artistas-coletores’, que ainda estão motivados pela pulsão primordial de suas próprias poéticas, calcadas naquilo que lhes interessa”, aponta. Sua experiência na Usina de Arte transformou seus modos de produção. “Esse conceito do artista que vai até a comunidade precisa ser desfeito. A comunidade não tem portas, ela não tem um limite físico, ela não é estável. Tudo está sujeito a transformação”, comenta. “Chegamos no momento de juntar teorética, práxis artística, educação, instituições e o partícipe, pois não há como não pensar no trabalho de arte que acontece também fora do campo estético, que incorpora aquilo que a gente não considera arte. É impossível não tomar como assunto a separação que a gente ainda vive entre a cultura erudita e a popular. O desafio agora é atuar num projeto como a Usina de Arte sem que essas fronteiras existam.”