POESIA PORRADA
A literatura de protesto, que vem sobretudo de poetas jovens, negros e performáticos das periferias das grandes cidades, brilha em competições públicas de poesia falada e incendeia torcidas
A literatura de protesto que vem de poetas jovens, performáticos e de periferia brilha em competições
SLAM QUER DIZER MUITA COISA. É O SOM DA PANCADA QUANDO SE BATE UMA PORTA. UMA DANÇA EM QUE AS PESSOAS SE JOGAM UMAS CONTRA AS OUTRAS. UM ESTILO DO GÊNERO MUSICAL DEATH METAL. O TOMBO DE UM SKATISTA. O ATO DE INJETAR UMA DROGA NA VEIA. UMA PRISÃO. Slam também quer dizer criticar duramente. Os discursos ritmados já tinham entrado na música afro-americana, com o hip-hop ou o rap, quando o poetry slam surgiu em Chicago para nomear as competições de poesia falada. Em 1984, o poeta americano Marc Smith começou a experimentar a transformação de um microfone já aberto para leitura de poesias numa competição pública. Em 1990, em São Francisco, na Califórnia, surgiu o primeiro concurso nacional de slam. Ano a ano, o gênero disseminou-se pelo globo. Em 2008, o slam apareceu em São Paulo no Zona Autônoma da Palavra (ZAP), com a competição criada pelo coletivo de teatro hip-hop Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Atualmente há dezenas de competições em atividade no País.
Os poetry slams normalmente são abertos e qualquer um pode participar. As regras de um slam costumam ser as seguintes: os poetas inscritos devem ler um poema de sua autoria, ou improvisar, sem fazer uso de acompanhamento musical. Em geral, a duração máxima permitida é de 3 minutos por poesia. Os jurados são pessoas escolhidas na plateia. Ao final de cada performance, os jurados levantam placas com notas de 1 a 10. A nota mais alta e a mais baixa são eliminadas. As intermediárias valem. A plateia torce e grita. Os poetas mais bem votados passam para a etapa seguinte. Os temas são tirados do cotidiano, com relatos dramáticos e protestos agudos contra racismo, machismo, homofobia, violência e outras mazelas sociais. Na cidade de São Paulo, além do ZAP, há o Slam da Guilhermina, ao lado do metrô Guilhermina-esperança, o Slam do 13, em Santo Amaro, o Slam da Norte, na Freguesia do Ó, o Slam das Minas SP (itinerante) e o Slam da Ponta, em Itaquera, entre outros. O Slam da Guilhermina também organiza competições interescolares. O Menor Slam do Mundo (itinerante) promove batalhas com poemas de até 10 segundos. Na mesma noite acontece o Minimenor Slam do Mundo, com disputa entre poemas de até 3s, e o Nano Slam, com poesias de até 1s, ou seja, basicamente uma só palavra inventada, em geral pela contração de duas outras (como faz também o artista visual Jorge Menna Barreto na sua série Desleituras, de 2011, com as chamadas “palavras híbridas”). Em dezembro último, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, aconteceu a quinta edição do Slam BR, o campeonato nacional fundado em 2014 e dirigido desde o início por uma pioneira do slam no Brasil, a atriz e cantora Roberta Estrela d’alva, cofundadora e integrante do Núcleo Bartolomeu. Ela havia ganhado, em 2011, o terceiro lugar na 8ª Copa do Mundo de Slam, que acontece em Paris desde 2004. No ano seguinte, Roberta foi premiada no Green Mill Jazz Club de Chicago. É curadora do Rio Poetry Slam, que desde 2014 acontece anualmente na Festa Literária das Periferias, no Rio de Janeiro.
Na abertura do Slam BR foi exibido o documentário SLAM – A Voz do Levante, de Tatiana Lohmann e Roberta Estrela d’alva. Houve workshops gratuitos na programação paralela do Sesc. Um deles foi sobre Voz e Performance Poética, com a cantora, compositora e multi-instrumentista Andrea Drigo. Outro sobre O Corpo Político em Performance, com a atriz, MC e também cofundadora do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos Luaa Gabanini.
O Slam BR trouxe para a última competição 25 slammers de 18 estados brasileiros, escolhidos durante o ano em etapas regionais. Cada slammer teve de apresentar, no mínimo, seis poemas. As eliminatórias, as semifinais e a final do Slam BR ocorreram em quatro dias consecutivos.
À vencedora, a mineira Pieta Poeta, caberá representar o Brasil na Copa do Mundo, em Paris.
“Eu digo slam, vocês dizem Brasil. Slam! Brasil!”, assim começa a interação do apresentador com a plateia animada a cada rodada da competição. Na hora da votação, “Credo!” é o que o público grita a cada vez que um jurado dá um voto menor que 10. Entre uma apresentação e outra, o canto da plateia é uma batida do funk Tchu tcha, tcha tchu tchu tcha!, que também foi refrão de um hit da dupla sertaneja João Lucas e Marcelo, de 2012, que teve videoclipe com participação de Neymar e entrou na trilha sonora da telenovela Avenida Brasil.
QUALQUER DETALHE DA VIDA PODE SER ESTOPIM DE ESCRITA
A vencedora do Slam BR, Pieta Poeta, que também assina Piê Sousa, nasceu nos anos 1990 e vive na região do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, com seus dez gatos resgatados. É professora de biologia e estuda percussão. Sempre escreveu poesia e já lançou dois livros: a antologia poética À Luta, À Voz (2017) e Lua nos Pés (2018), com poemas, contos e crônicas. O primeiro com o Coletivoz, sarau de poesia de BH. O segundo lançou no Sarau Comum, que acontece há cinco anos no Espaço Comum Luiz Estrela, “fruto de uma ocupação. O clima mais agradável da cidade pra se recitar e ouvir poesia!”, diz ela. Na página do local no Facebook, além de muitos elogios, há reclamações de vizinhos, incomodados com a “bagunça” e o “barulho”. Não dá para agradar a todo mundo o tempo todo.
Pieta entrou para o mundo do slam em 2016 e o slam tornou-se um ponto de encontro de tudo que produz, ela conta. Pieta faz parte do bloco Tapa de Mina e da banda La Vulva, “propostas musicais de iniciativa feminina”. Faz parte também da coletiva (assim, no feminino) MANAS, uma proposta de conexão entre as mulheres (cis, trans, travestis) na poesia nacional. “Além das pontes, nós fazemos o Sarau das Manas, o Slam das Manas e a roda de conversa”, enumera. Um dos poemas que Pieta declamou no Slam BR, Útero, trata de uma mãe que perde o filho e é acusada de ter provocado um aborto. Seria o poema autobiográfico e seria o nome Pieta uma referência à Pietà de Michelangelo, escultura que representa Jesus morto nos braços da Virgem Maria? “Todo mundo me pergunta sobre a Pietá de Michelangelo, mas não tem nada a ver”, responde Pieta. “E Útero, sim, é infelizmente autobiográfico”. Mas nem todos os seus escritos são autobiográficos. “Meus poemas são fruto de absolutamente qualquer coisa. Qualquer detalhe da vida pode ser estopim de escrita. Não só o eu e o outro”, responde.
A imagem de Pieta Poeta não aparece nos vídeos feitos durante o Slam BR. A câmera de filmagem apontou a tradutora simultânea em libras, durante as performances de Pieta. Ela explica: “Desenvolvi fobia de câmera. Não sou capaz de olhar nem tocar diretamente numa câmera. Ela me desencadeia crises ansiosas sérias”.
Dos que apresentou na final do Slam BR, Pieta Poeta selecionou o poema Dia de Cão para publicar na select. “Infelizmente, o outro texto (Cabeça Grande) foi escrito à mão num bloquinho de anotações que se perdeu na viagem de volta”, conta. Sobre a competição em Paris, que vai acontecer de 27 de maio a 2 de junho, diz que está com a expectativa alta. “Ainda não sei quem são os outros slammers, mas conhecê-los vai ser a melhor parte.” Entre os escritores e poetas que Pieta mais admira estão seus contemporâneos, colegas e amigos. Quem são? “Vários poetas da poesia marginal com quem tive a honra da troca de experiências. De Bim Oyoko a Sérgio Vaz, de Nívea Sabino a Luiza Romão, Zi Reis, Patricia Meira, Beto Belinatti e Bicha Poética, entre vários outros.”