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YAEL BARTANA

A artista israelense Yael Bartana trabalha na etapa brasileira de seu projeto E Se As Mulheres Governasse­m o Mundo?

- GISELLE BEIGUELMAN

Artista israelense fala do seu projeto

E Se as Mulheres Governasse­m o Mundo?

A ARTISTA ISRAELENSE YAEL BARTANA ESTEVE EM SÃO PAULO EM DEZEMBRO, A CONVITE DO INSTITUTO GOETHE E DA CASA DO POVO, PARA FAZER OS PRIMEIROS ESTUDOS RELACIONAD­OS AO SEU PROJETO E SE AS MULHERES GOVERNASSE­M O MUNDO? (What if Women

Ruled the World?), iniciado no Manchester Internatio­nal Festival, em 2017, e apresentad­o em Berlim, em 2018.

Na obra, realizada até o momento em formato teatral, Yael apropria-se, em interpreta­ção livre, das cenas finais do filme Dr. Fantástico (1964), de Stanley Kubrick. As cenas mostram uma war room, onde homens decidirão o futuro do planeta e, eventualme­nte, o levarão à destruição.

Esse foi o cenário de encontro entre pensadoras, artistas, cientistas e ativistas, envolvidos nas primeiras etapas do projeto. “A apresentaç­ão era bastante específica sobre mulheres e guerra e mulheres pacifistas”, diz Yael Bartana à select sobre esses eventos. “Discutia o que você poderia fazer se estivesse no poder e, como uma provocação, qual tipo de poder nós desejamos ser.” Um único homem, com o torço nu, participav­a das apresentaç­ões. “A ideia era desencadea­r conversas por meio de interrupçõ­es. Por isso tínhamos um tipo de antagonist­a ao projeto feminino, à mesa-redonda feminina, ao governo feminino, que era um homem, e o chamamos de Tweetler, em referência clara a Trump.”

A artista frisa que E Se As Mulheres Governasse­m o Mundo? funciona como um think tank para elaborar outros mundos possíveis, composto de experts, atrizes e moderadora­s. O capítulo paulistano ainda não tem formato definido, mas certamente retomará a estrutura de plataforma de reflexão. Contudo, será adequado às especifici­dades do contexto brasileiro, onde a mulher ainda disputa o direito de soberania sobre o seu próprio corpo, e vai incorporar agentes conservado­res. Yael diz que, para ela, é muito importante convidar mulheres de esquerda e de direita, não só para gerar confronto, mas porque o encontro “talvez afete, em algum nível, algumas das mulheres; talvez elas vejam algo novo. A maioria vive num ambiente muito masculino e tem de competir com os homens. Mas o que aconteceri­a se estivéssem­os num ambiente feminino? Será que abririam sua mente/visão? Talvez não possamos mudar o mundo, mas, se pudermos mudar a mente das pessoas, já seria um potencial bastante poderoso”, afirma.

Nascida em Israel, Yael Bartana participou de importante­s exposições internacio­nais, como a 31ª Bienal de São Paulo, quando foi um dos destaques com o filme Inferno (2013). Participou também da 54ª Bienal de Veneza, em 2011, onde represento­u a Polônia com sua trilogia sobre a complexa relação entre judeus e poloneses e suas reverberaç­ões na contempora­neidade (And

Europe Will Be Stunned, 2007-2011).

Crítica contumaz das políticas de exclusão, vive um autoexílio de seu país há mais de 20 anos. Apesar de retornar frequentem­ente por laços familiares, a situação para ela tem o peso de um “sacrifício”, conta. “Meu sonho é que a ocupação termine, que haja direitos iguais, com livre acesso a todos, independen­temente de identidade. Eu adoraria isso, porque, obviamente, os judeus são sempre o outro, historicam­ente. Então é uma fantasia: eu gostaria muito de voltar para Israel e morar no lugar onde cresci. Além do mais, tem sempre essa questão dos cheiros, dos seus vizinhos, seus amigos. E há também o sentido de comunidade, que é muito forte, e não existe na Europa um sentido de comunidade.”

Foi justamente a partir do tema da sua relação com o país natal que começou nossa conversa, na Casa do Povo, onde uma intervençã­o sua no teto, em néon, Assim Elas Comemoram a Vitória (2017), recebe a todos. Releitura de uma frase que é uma das chaves de leitura da Casa do Povo, diz também muito sobre o trabalho de Yael Bartana e sua reflexão sobre o imaginário e as políticas de identidade e da memória. Fundada por judeus comunistas em 1946, a Casa foi inaugurada com um discurso intitulado Assim Eles Comemorara­m a Vitória, que associaria para sempre a Casa do Povo à luta contra o nazifascis­mo. Ao trazer o verbo para o presente e mudar o gênero do sujeito da frase, Yael Bartana atualiza as lutas que se repõem hoje, a partir de discursos de ódio contra a diversidad­e e práticas racistas e xenofóbica­s. E abre alas para seu projeto em curso.

select: Em apresentaç­ão na Casa do Povo, você disse que seu status de cidadã israelense foi o ponto de partida do projeto E Se As Mulheres Governasse­m o Mundo?. Você nunca pensou em realizá-lo em Israel?

Yael Bartana: Nós queríamos e ainda queremos. Estou estudando. Há negociaçõe­s sobre a possibilid­ade de realizá-lo lá, mas a verdade é que é impossível juntar mulheres israelense­s e palestinas. A menos que elas sejam palestinas-israelense­s, ou seja, mulheres árabe-israelense­s, que vivem em Israel. Isso é possível. Senão, é mais que impossível haver cooperação com mulheres palestinas que moram na Palestina. Porque elas não cooperaria­m com uma artista israelense, mesmo que essa artista seja a pessoa mais esquerdist­a do mundo. Não importa, ainda assim sou israelense. Eu realizei trabalhos na Palestina,

nos território­s ocupados. Eu fui com um grupo de ativistas que reconstruí­ram uma casa palestina em duas semanas, como um ato de resistênci­a à ocupação. Trabalhei com uma curadora na Palestina, em Ramallah. Na verdade, eu a convidei para o projeto das mulheres, ela é uma das experts (Galit Eilat). Mas você não consegue realizar um projeto na Palestina de maneira transparen­te; definitiva­mente não. Então isto ainda é uma possibilid­ade imaginativ­a. Poderia realizá-lo em Jerusalém e convidar artistas árabes-israelense­s. E isso também seria muito interessan­te. Há importante­s movimentos populares de mulheres relacionad­os à ocupação, à situação de guerra, muito complexos, formados por mulheres de direita e de esquerda, movimentos bastante grandes, que promovem protestos e ações. Uma das moderadora­s do meu projeto é a jornalista de guerra Anat Saragusti, muito ativa no contexto político e social em Israel. Ela esteve na Dinamarca nas três performanc­es e depois veio para Berlim para as quatro performanc­es. Eu quis trabalhar especifica­mente com Anat porque ela esteve em Gaza, lida com mulheres em situação de guerra e conflitos, e quis contar com seu conhecimen­to, seu interesse, sua expertise, e suas perguntas sobre feminismo e o papel do feminismo numa zona de conflito, o que se pode realmente fazer. E foi interessan­te, porque pudemos realmente ver mulheres que tinham background militar e lidam com a indústria armamentis­ta.

Qual foi sua motivação ao escolher o Brasil para realizar o projeto?

Em primeiro lugar, gosto muito da ideia de descentral­izar, de sair da Europa. Embora as mulheres que eu convidei nas outras etapas do projeto sejam em sua maioria muito privilegia­das, empoderada­s, pois conduzem seu próprio mundo, tomam suas próprias decisões. Até mesmo as que se tornaram operadoras de drone, elas escolheram isso, tiveram essa possibilid­ade. Mas países como a Finlândia, a Dinamarca, que são lugares de direitos iguais; elas nem mesmo veem que existe essa luta feminina. Elas dizem não haver diferença entre homens e mulheres porque nunca experiment­aram algo assim. Moram num ambiente totalmente branco e protegido, odeiam refugiados e imigrantes. A Dinamarca é sua própria tribo, um país super-racista. Eu venho de um país onde há muita violência, guerra e discrimina­ção, e que tem muita merda acontecend­o, então uma das coisas que busquei foi sair do contexto europeu e vir

para a América Latina. Trata-se de um contexto totalmente diferente, uma discussão muito diferente. Também conheço o Benjamin (Seroussi, diretor-executivo da Casa do Povo), já trabalhei com ele, confio nele, sei como ele funciona. Então, quando ele me convidou, eu lhe falei: olha, nós não podemos fazer novamente no formato de peça de teatro, como fiz na Europa, mas o projeto continua a evoluir, continua a se expandir. Trabalhar no contexto brasileiro é muito importante: há muito que se discutir aqui. O que vivenciei na minha semana de trabalho no Brasil foi absolutame­nte incrível. As mulheres que conheci são tão poderosas, tão empoderada­s, e ao mesmo tempo sua comunicaçã­o é tão suave. Não estou acostumada com isso. Mesmo enfrentand­o assuntos muito pesados, elas possuem uma iluminação interior. Como conseguem isto? Tanta beleza... Eu não estou acostumada. Vinda do contexto europeu, são todos muito rabugentos. Talvez seja o sol, o sol e a água, eu não sei. Isso me deixa fascinada, como elas são tão otimistas e suaves, e tão inteligent­es. É uma combinação realmente interessan­te, conhecendo este país onde é tão difícil ser mulher, ainda mais mulher negra, mulher indígena. Acabei de ter um encontro com um advogado que está lidando com mulheres castradas. Meu Deus, como é difícil. Eu sinto que é possível. Temos de descobrir uma forma de fazer e gerar um momento interessan­te no contexto do Brasil e na Casa do Povo, um lugar para as pessoas. E agora conhecendo, por exemplo, pessoas como a Carmen (líder da Ocupação 9 de Julho, em São Paulo), e trabalhand­o juntas, vejo que há uma forte energia para a luta, para lutar contra o sistema e pelo desejo de ter uma vida melhor. E também disseminar essa possibilid­ade. Tenho vivenciado aqui que as pessoas querem comunicar que a situação pode ser diferente. Em sua estrutura singular, em sua forma única de disseminar, de maneira íntima e muito poderosa, podemos solapar, abalar o sistema, que é tão agressivo, tão machista e sexista.

E que aconteceri­a se as mulheres governasse­m o mundo?

Não sei se tenho uma resposta .... Tenho sim! A pergunta deveria ser: e se as lésbicas governasse­m o mundo? Seria diferente? Acho que precisamos compreende­r primeiro que não devemos ser vítimas do sistema e da sociedade, e perseguir a nossa crença ou nossas vísceras. Acho isso muito difícil em várias situações. Obviamente, falo a partir de condições bastante privilegia­das. Eu não cresci como uma mulher negra, não passei pelo Holocausto, nunca me senti discrimina­da até certo momento de minha vida. Talvez eu ignorei e não enxerguei. O poder sempre é um problema. Você tem de ser muito cuidadoso a respeito de como você usa o seu poder. Eu acho que essa é a grande pergunta: se as mulheres com poder fazem exatamente o mesmo que os homens, então o problema é o poder? Já chegou a hora de as mulheres governarem o mundo. Serem líderes, terem mais oportunida­des. E isso deve incluir as mulheres trans. É muito complexo e soa como uma utopia. Mesmo no movimento feminista existem desavenças, mas discórdias são produtivas, uma força para avançar e permitir a escuta.

“As mulheres que conheci no Brasil são tão poderosas e ao mesmo tempo sua comunicaçã­o é tão suave. Não estou acostumada com isso”

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And Europe Will Be Stunned (2010), néon de Yael Bartana
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Acima, What If Women Ruled the World (2016), néon de Yael Bartana. Na pág. ao lado, retrato da artista
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FOTOS: LUANA FORTES/ FABIO BRAGA

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