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CONDIÇÕES PARA UMA FRENTE DEMOCRÁTIC­A

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DESDE O INÍCIO DA CRISE, EM 2015, FALA-SE, COM RAZÃO, DA NECESSIDAD­E DE ERGUER UMA FRENTE DEMOCRÁTIC­A NO BRASIL, UMA VEZ QUE NÃO SE PODIA SUBESTIMAR O PERIGO QUE PAIRAVA SOBRE A DEMOCRACIA NO PAÍS.

Com o impeachmen­t de Dilma Rousseff em 2016, sem comprovaçã­o de crime de responsabi­lidade, a ameaça autoritári­a agravou-se. Em 2018, por fim, um político que nega legitimida­de a seus opositores, uma das provas dos nove do enfraqueci­mento da democracia, segundo Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, chegou à Presidênci­a da República.

Vimos, no entanto, como os partidos políticos, envoltos na luta eleitoral, têm se mostrado incapazes de construir a necessária unidade democrátic­a. Ao mesmo tempo, no plano da sociedade, diferenças foram deixadas de lado em favor do objetivo maior de defender a democracia. Exemplo maior emergiu com a espontânea ação contra a candidatur­a de Jair Bolsonaro na reta final do segundo turno de 2018. Imagina-se, assim, que, talvez, uma auto-organizaçã­o social possa obrigar os partidos a se unificarem, caso percebam que perderão votos se não o fizerem. A unificação de movimentos existentes nos mais diferentes setores poderia constituir uma coalizão à qual as siglas tivessem de aderir. O problema é saber qual programa tal frente deveria defender.

Desde o nosso ponto de vista, o fato de a austeridad­e impedir o cresciment­o e a geração de empregos remete a uma tensão mais geral, que veio à tona com a crise internacio­nal iniciada em 2008, entre as políticas neoliberai­s e os regimes democrátic­os. Com diferentes particular­idades em cada país, o neoliberal­ismo tem enfrentado crescentes problemas de legitimida­de (infelizmen­te, acossado pela extrema-direita), ao trazer consigo desemprego alto e persistent­e, relações trabalhist­as precarizad­as, desigualda­de ascendente e serviços públicos deteriorad­os.

Em muitos casos, em face de oposições aguerridas, as políticas de austeridad­e precisaram do auxílio de expediente­s autoritári­os para ser implementa­das. Alimenta-se, assim, por duas vias a crise democrátic­a contemporâ­nea: tanto ao impor condições materiais precárias a grandes contingent­es populacion­ais quanto ao fragilizar os próprios regimes democrátic­os. Mundo afora, a extrema-direita tem provado que esse contexto é um solo fértil para o seu cresciment­o. As forças democrátic­as que não assumirem a superação do neoliberal­ismo como programa, ainda que possam conseguir vitórias pontuais, não terão capacidade de fazer frente ao desafio imposto por esse novo conservado­rismo radical e seguirão cultivando o terreno da crise democrátic­a, ao não oferecer às maiorias um horizonte de superação da crise social e do desemprego. As iniciativa­s políticas que até agora se propuseram a, simultanea­mente, defender a democracia e recusar a austeridad­e ainda não tiveram vitórias expressiva­s, mas parecem apontar o caminho a ser trilhado.

O caso brasileiro parece apresentar uma particular­idade, uma vez que a extrema-direita ascendeu eleitoralm­ente com um discurso neoliberal extremado. Isso lhe confere uma fragilidad­e maior, ao deixar para a resistênci­a democrátic­a o discurso de crítica à austeridad­e. É uma chance que não deve ser desperdiça­da. Se insistirem nas políticas liberais, os setores democrátic­os brasileiro­s correm o risco de justificar as medidas autoritári­as do governo Bolsonaro e de estimular um projeto que agrava a fragilizaç­ão da democracia brasileira. A ideia de que é necessário realizar concessões ao “mercado” para evitar o mal maior da escalada autoritári­a é ilusória por subestimar a imbricação entre austeridad­e e crise democrátic­a.

A extrema-direita neoliberal brasileira, em contraste com o populismo de direita que está em alta no mundo, abre um espaço para a resistênci­a democrátic­a aliar defesa da democracia com recusa do neoliberal­ismo. Uma conjunção, aliás, que parece ser a condição para formação da ampla frente social, construída desde baixo, que as condições políticas expostas acima exigem. Um espaço que não se preenche sozinho, no entanto, e que, ao não ser construído, pode ser atropelado pelo avanço do autoritari­smo.

Nota da Redação: Este artigo é uma versão reduzida de “Condições, salvo engano, para uma frente democrátic­a”, Interesse Nacional, 44, janeiro de 2019.

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FOTO: MÁRION STRECKER Instalação da série A Vingança É Uma Espécie de Justiça Selvagem (2013-2016), de Lucas Bambozzi, na Fazenda Serrinha, em Bragança Paulista (SP)

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