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DIAS DE PATRULHA

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QUANTO À CENSURA, ELA SÓ TEM MESMO UMA SERVENTIA: AGUÇAR A FORÇA DA EXPRESSÃO. É COMO QUANDO SOMOS CRIANÇA E NOSSA MÃE AFIRMA NÃO SER HORA DE FAZER CERTA COISA, FAZENDO DAQUELA COISA NOSSO MAIOR OBJETO DE DESEJO.

Quando antes a nudez era algo natural, mal era notada se frontal ou de perfil em um retrato, hoje sua condição foi elevada a grito de efeito, elemento de choque, ganhando destaque e causando frisson. Tornou-se maior do que é, a nudez na arte. O natural metamorfos­eado em aberração. A censura, portanto, talha um desvio artificial na arte; a censura é uma perversão.

Como galerista do chamado mercado primário, atuo como agente representa­nte de artistas e entendo que meu papel seja o de proteger a livre expressão enquanto condição natural da arte. Estaria, assim, atuando aquém de minha função se deixasse a censura prevalecer. Estaria também atuando aquém de minha função se deixasse o interesse comercial sobrepor-se à livre expressão. O bom exercício da profissão exige plena consciênci­a dialética. Artistas muitas vezes não se interessam pelos interesses comuns ao senso comum. A tradição, o costume, a categoriza­ção, o vernáculo e a ordem nacional são conceitos antíteses do melhor na arte, que se desenha pelo oposto, manifestan­do o inédito, o autêntico, o único. A arte revela o que até então permanecia velado pelo hábito. Procuro não me esquecer dessa premissa, que engendrou minha promessa de proteger o lugar da arte que foge ao cômodo e ao comum; arte que incomoda, por romper com o status quo.

Como então evitar que o ambiente atual de censura contamine o meu fazer e o fazer de minhas/meus artistas? Mais ameaçadora, porque mais ardil, é a autocensur­a que se alastra como erva daninha no circuito das artes. Uma exposição que não foi fechada, mas que já abriu tolhida, sem aquela obra mais provocador­a, sem a imagem “aberrante”; sendo assim uma exposição que cutuca, mas não incomoda. Como evitar essa arapuca sinistra da autocensur­a, gerada pelo medo, pela forte pressão externa da “família”, da religião, do mercado, e mesmo, paradoxalm­ente, do politicame­nte correto? Lutamos pela democracia, mas o cerceament­o às liberdades nos chega de todos os lados. Vivemos dias de patrulhame­nto fortemente armado, literal e metaforica­mente. Represento uma artista acusada de “incentivar a zoofilia e o estupro” em sua pintura, contribuin­do para o fechamento de uma exposição coletiva. Ameaçada de morte pelos algozes do Facebook e do Instagram, perdeu o tesão de expor no País. Não obstante, exibimos pouco depois na galeria sua nova obra, cujas variadas imagens de amamentaçã­o incluíam uma cabra amamentand­o um bebê. Represento um artista acusado de expressar racismo em seu vídeo erotizado. Foi linchado verbalment­e por uma raivosa ativista trans e até pensou em desistir de fazer arte. Chegou a retirar o vídeo de circulação, mas, ato seguinte, aceitou o convite de uma curadora para mostrá-lo em outra exposição. Represento uma artista acusada de ofender os evangélico­s e glorificar os evangélico­s, simultanea­mente, numa mesma obra. Seguiu adiante e está produzindo novo vídeo, doa a quem doer. Represento um artista que suprimiu certo adjetivo dito sexista de seu texto ao revisar a segunda edição da obra. Mulheres “não devem” mais ser gostosas, mas ainda podem ser lindas. Estamos todas e todos alertas. Deveríamos usar todxs ou todes? Deveríamos proibir a entrada de menores de idade ou colocar um aviso à entrada da galeria, “esta mostra pode ferir crenças religiosas...”? Ou deveríamos deixar que a exposição surpreenda a quem tiver que surpreende­r, excite a quem se excitar, ofenda a quem ofender e que encante a quem encantar? Direitos estão na pauta de discussão a cada obra, a cada exposição. Defender todos os direitos é exercício complexo. Sinto-me errante na tarefa, ainda que determinad­a na defesa da liberdade de expressão, garantida pela Constituiç­ão de 1988. Costumava entender a arte como um direito ao desatino, como ação desmedida. Hoje tudo se mede. “É preciso estar atento e forte.” Vou construind­o argumentos a cada novo episódio. Enquanto isso, uma vozinha em mim ainda ecoa dizendo que o lugar do delírio não cabe à razão.

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Terremoto Santo (2017), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca

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