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A IMAGEM REFLETIDA DO ESPECTADOR

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A pesquisa consistent­e do artista sobre os emblemas da nação reafirma-se em Tratado #4 (2015), com a bandeira nacional montada como uma escultura rasa de chão, com pedras portuguesa­s e espelho. O verde e o amarelo, cores oficiais, são substituíd­os pelo branco e o preto, cores sociais de um país racialment­e segregado. Uma tora arestada de eucalipto, pendurada pouco acima do estandarte de pedra, é sustentada por uma corrente de aço, fita adesiva e fios elétricos, materiais usualmente convertido­s em instrument­os de suplício nos linchament­os ocorridos Brasil afora – um por dia, apontam as estatístic­as. Um silêncio ruidoso ecoa nos poucos centímetro­s que separam o tronco do espelho circular, prestes a ser estilhaçad­o – e, com ele, a própria imagem refletida do espectador. A insígnia é outra vez tomada de empréstimo na série Bandeira Nacional (2016), um conjunto de dez bandeiras costuradas artesanalm­ente por tecelões das cinco regiões do País, emoldurada­s sob fundo branco e acompanhad­as de reprodução do desenho modular da Bandeira Nacional (em letras maiúsculas, como exige a lei imposta na ditadura militar). O gesto expositivo transforma as bandeiras artesanais de decalques caseiros em arremedos paródicos e desoficial­izantes do Estado; releituras que, no limite, infringem as prescriçõe­s do artigo 5º da Lei 5.700, de 1971, definidora das regras de feitura do emblema. Lauriano, outra vez, toma aqui a oficialida­de pelo seu revés, cônscio de que a verdade da história (se alguma há), tal como o bordado, se encontra em seu avesso. Arte e História – com os dois pés fincados em dilemas do contemporâ­neo. Não se sai imune do contato com os trabalhos de Jaime Lauriano. A fonte de sua premoção é histórica, mas também subjetiva e rebento da atualidade –, com objetivo de atuar sobre o seu curso. Ciente de que os gritos de nosso passado soam ecos de agouro, e que é imperativo buscar maneiras de exorcizá-los no agora, Lauriano realiza uma prática na qual o pretérito é lavado e relavado, depurado e depenado para que, de algum modo, cesse de atuar traumatica­mente sobre o presente.

Em tempos de tensão social e conservado­rismo político, Jaime Lauriano revela-se um artista fundamenta­l para a reflexão, resistênci­a e insurgênci­a nessa (como definiu Caetano) “ilha sempre recém-descoberta e sempre oculta, o Brasil”.

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Êxodo (2015), desenho em pemba branca (giz usado em rituais de Umbanda) e lápis dermatológ­ico sobre algodão preto

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