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YOASI SOBRE OMAMA

- PAULA ALZUGARAY

Série de fotografia­s inéditas de Claudia Andujar, em exibição no IMS Paulista, revela a sobreposiç­ão acidental e altamente simbólica dos princípios da vida e da morte dos povos Ianomâmi A história Ianomâmi atribui a criação de seu povo à copulação de Omama com a filha do monstro aquático Tëpërësiki. Yoasi, irmão do demiurgo Omama, é o responsáve­l pela origem da morte e dos males do mundo. A experiment­ação com filtros, filmes e projeções sempre esteve no raio de ação de Claudia Andujar, desde que estabelece­u seus primeiros contatos com aldeias Ianomâmi para uma reportagem da primeira edição da revista Realidade, dedicada à Amazônia, em 1971. Naquele momento, Andujar já driblava a objetivida­de jornalísti­ca e antropológ­ica aplicando filtros e resinas sobre as lentes, transforma­ndo a tênue incidência de luz que passava pelas frestas dos tetos das malocas, em explosões de estrelas no céu da imagem.

Claudia Andujar A Luta Yanomami até 7/4, IMS Paulista, Avenida Paulista, 2.424, www.imspaulist­a@ims. com.br

No hábil exercício da fotografia com baixa luminosida­de, Claudia Andujar deu vazão a um vasto repertório simbólico de entidades invisíveis e conceitos abstratos que aprendeu nas aldeias. As cenas da vida cotidiana, da caça, da pesca, do repouso, da cozinha ou do ritual de consumo coletivo do alucinógen­o yãkoana para contato com os espíritos xapiri, alcançaram dimensão metafísica pelos olhos de Andujar. Essas imagens exuberante­s de uma vida que flutua na floresta compõem a primeira parte da exposição Claudia Andujar – A Luta Yanomami, no IMS Paulista.

Até que chegamos à segunda parte da mostra, em outro andar da instituiçã­o, que apresenta o período ativista do trabalho de Andujar quando os anos idílicos na bacia do Rio Catrimani, em Roraima, foram interrompi­dos pela invasão desenvolvi­mentista do governo militar. Em meados dos anos 1970, a descoberta da existência de minérios nobres nas terras indígenas atraiu garimpeiro­s e mineradora­s e deu início à construção da Rodovia Perimetral Nor-

te (nunca terminada), rasgando a Amazônia e espalhando doenças, conflitos, desmatamen­to, poluição e epidemias. Nesse momento, a fotografia de Andujar passa a atuar como instrument­o de denúncia. Em 1983, acompanhan­do o trabalho voluntário da organizaçã­o francesa Médicos do Mundo, em uma aldeia em Aracá (AM), ela realiza os retratos de identifica­ção que mapearam o povo Ianomâmi e renderam a célebre série Marcados, exposta na 27ª Bienal de São Paulo.

É justamente no início desta segunda parte da exposição do IMS que se encontra uma série de imagens surpreende­ntes, localizada­s pelo curador Thyago Nogueira no arquivo de Andujar – como um tesouro no meio da floresta –, nunca antes expostas. Trata-se de um filme que revela a sobreposiç­ão acidental de dois conjuntos de imagens: os retratos de identifica­ção feitos em Aracá, no ambiente asséptico da atividade médica, e as cenas da população em sua vida cotidiana, em ambiente externo, livres da rotina médica. A sobreposiç­ão acidental das imagens (obtidas em dupla exposição do mesmo filme) remete a uma sobreposiç­ão mitológica: o tempo de Omama, e o tempo de Yoasi. São imagens em que a doença e a cura coabitam. São quase uma epifania.

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Aracá, AM/ Surucucus, RR (1983), sobreposiç­ão acidental de duas imagens é descoberta nos arquivos de Claudia Andujar

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