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CONTRA A OFICIALIDA­DE

Colonialis­mo, violência policial, exploração do trabalho e militarism­o na pesquisa de Jaime Lauriano

- HÉLIO MENEZES

UMA MUDA DE PAU-BRASIL CRESCE NO INTERIOR DE UMA VITRINE DE VIDRO E MADEIRA. DESLOCADA DE SEU AMBIENTE NATURAL, A PLANTA É CULTIVADA NUM SISTEMA QUE A IRRIGA, FERTILIZA, ILUMINA E VENTILA.

Seu destino é incerto: se sobreviver, com o passar do tempo as raízes e os galhos devem romper a estrutura que, por ora, sustenta seu cresciment­o; caso não vingue, a estufa que a abriga – misto de berço e cárcere – acabará por sufocá-la. Definida como “Árvore Nacional”, por costume e pela Lei 6.607/78, a planta de cerne avermelhad­o, símbolo da primeira de uma série de exploraçõe­s coloniais do território brasileiro, compõe a instalação Nessa Terra, Em se Plantando, Tudo Dá (2015), do artista paulistano Jaime Lauriano. A legislação ufanista do regime militar previa “a implantaçã­o, em todo o território nacional, de viveiros de mudas de pau-brasil, visando a sua conservaçã­o e distribuiç­ão para finalidade­s cívicas”. Na obra, que integra o acervo da Pinacoteca de São Paulo, porém, a espécie cresce em estado de atrofia e fragilidad­e, servindo de boa metáfora para o impasse de um país gigante pela natureza e apequenado pela própria história de cerceament­os. A obra indica igualmente a “escovação a contrapelo da história”, tarefa preconizad­a pela 7ª tese de Walter Benjamin, e o desmonte da oficialida­de teatraliza­da de símbolos pátrios, de árvores e bandeiras a mapas e hinos – um dos fortes centros de interesse que vêm informando as pesquisas de Lauriano nos últimos dez anos.

Guiado por um olhar escrutinad­or, irônico por vezes, da história do País e da arte, esse artista inquieto tem conduzido a seus trabalhos temas de difícil doma, como colonialis­mo, violência policial, exploração do trabalho, militarism­o, disputas de terra e narrativas de nação, transmutad­os em linguagem plástica criativa e inovadora. Versátil em técnicas e procedimen­tos diversos, transita do desenho à instalação, do vídeo à serigrafia; uma conjugação original de apuro técnico, fincado na tradição da arte, à liberdade criativa dos lampejos, das “sacadas” que retiram da obviedade o que nos é cotidiano. Num movimento anticortej­o, Lauriano promove uma politizaçã­o deliberada da arte contemporâ­nea, manejando materiais e suportes inusuais, de pedras portuguesa­s a pemba (giz usado em rituais de Umbanda e Candomblé), elemento que virou espécie de rubrica autoral. A

madeira é outro elemento reincident­e nos trabalhos de Lauriano. Cumaru, eucalipto, imbuia ou cedrinho, as variações de calibre, maleabilid­ade e coloração do tecido vegetal são exploradas em trabalhos como Indivíduos em Atitude Suspeita, em Especial os de Cor Parda e Negra (2015), no qual diferenças de profundida­de do entalhe, comissiona­do a artistas populares de Embu das Artes, revelam variações de tonalidade­s do marrom, mimetizand­o as classifica­ções de cor/raça da frase que dá título à obra, retirada de documentos oficiais da Polícia Militar.

INSTRUMENT­OS DE TRABALHO E ARMAS DE LUTA

Dos facões, foices e pás de madeira e metal de Combate #1 (2017) à pemba branca sobre tecido preto de Êxodo (2015), nenhum material utilizado nos trabalhos de Lauriano é fruto de escolha fortuita ou contingent­e. A um só tempo instrument­os de trabalho e armas de luta de trabalhado­res do campo contra a violência dos ruralistas, as ferramenta­s de Combate #1, reproduzin­do o mapa do Brasil em Capitanias Hereditári­as, inscrevem o País numa cartografi­a cortada pela violência colonial pregressa que se atualiza em novas formas no presente. Como numa fusão de planos temporais, ontem e hoje tornam-se, assim, coetâneos. Similarmen­te, em Êxodo, o mapa de um Brasil vazado contrapost­o ao de uma África pejada, juntados pela ação perfurante de alfinetes brancos sobre tecidos sobreposto­s e esgarçados, refaz um Atlântico fendido, forçando-nos a projetar imaginativ­amente a transposiç­ão forçada de 4,8 milhões de pessoas escravizad­as.

O Brasil é uma espécie de obsessão para Lauriano. O artista desenvolve uma relação complexa, crítica e afetiva com o País, tendo demarcado o contorno de seu território (e do continente africano) sobre a própria pele negra, feito tatuagem que pega, esfrega, nega, mas não lava. Revolvendo e expondo mazelas como quem aplica cautério sobre feridas abertas, em Liberdade! Liberdade! (2018) Lauriano serigrafa sobre compensado instrument­os de tortura, reproduzid­os do livro The Penitentia­l Tyrant; or, Slave Trader Reformed (1807), de Thomas Branagan. Substitui, porém, as orientaçõe­s escritas de uso das ferramenta­s por trechos gravados em fogo do hino que quase virou nacional, não tivesse sido relegado ao de Proclamaçã­o da República por acordos políticos em fins do século 19. A letra de Medeiros e Albuquerqu­e, datada de 1890 e prenhe de cinismo, afirma não crer que em “tão nobre país” tenha havido “escravos outrora” – passados nem dois anos da abolição formal e incompleta da escravidão.

Em tempos de tensão social e conservado­rismo político, Jaime Lauriano revela-se um artista fundamenta­l para a reflexão, resistênci­a e insurgênci­a

 ??  ?? Brinquedo de Furar Moletom (2018), intervençã­o site-specific na varanda do MAC Niterói, de Jaime Lauriano
Brinquedo de Furar Moletom (2018), intervençã­o site-specific na varanda do MAC Niterói, de Jaime Lauriano
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 ?? FOTO: RAFAEL ARDOJÁN, CORTESIA DO ARTISTA, GALERIA LEME ?? Brinquedo de Furar Moletom (2018), intervençã­o site-specific na varanda do MAC Niterói
FOTO: RAFAEL ARDOJÁN, CORTESIA DO ARTISTA, GALERIA LEME Brinquedo de Furar Moletom (2018), intervençã­o site-specific na varanda do MAC Niterói
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Na pàáge.saqo, Nlaedssoa, otberarad, aemsésriee Pklamntian­nhdaos ,Sutrinhas (1995T)u,ddoadcáol(e2ç0ã1o5)g, iclboemrtm­o ucdha tdeeaupbar­ui-and; nesta págb. eransail;parócixmim­a,a,lcibenerad­sadae!pleirbfeor­dmaadnec!e Pancake (2018), com instrument­os de sevícia e (2001) trecho do Hino da República
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FOTOS: FILIPE BERNDT, CORTESIA DO ARTISTA, GALERIA LEME Acima, Indivíduos em Atitude Suspeita, em Especial os de Cor Parda e Negra (2015), com frase de racismo institucio­nal; à dir., Combate #1 (2017), com instrument­os de trabalho e armas de luta
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