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MEMÓRIA DAS AMÉRICAS

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Alexia Tala escreve sobre como obra de Fernando Bryce desenreda narrativas do poder

COMENTAR A OBRA DE FERNANDO BRYCE, DESDE A MINHA PERSPECTIV­A, PASSA NECESSARIA­MENTE POR PENSAR UM TEMA RELEVANTE TANTO DENTRO COMO FORA DO CAMPO DA DISCIPLINA HISTÓRICA, uma relação entre a dupla história-arquivo. Ao desconfiar da grande história que aprendemos na escola, e que tão habilmente ajuda a construir e a manter por séculos a hegemonia dos vencedores desde a sua modernidad­e, a arte contemporâ­nea tem demonstrad­o uma abundante e profunda reflexão sobre o assunto. De acordo com vários pensadores, a crise da ciência histórica é um problema arrastado, até se transforma­r em sentido comum. A definição e os usos do arquivo – e suas transforma­ções na atualidade – respondem a vários processos, cujos efeitos na construção histórica modificara­m a maneira com que nos relacionam­os com o passado. Esse fenômeno, desde a perspectiv­a do arquivo, foi vigorosame­nte estudado por autores como Hal Foster ou Ana Maria Guasch. Um importante paradoxo decorre a esse respeito: a crise como abertura, a desautoriz­ação das narrativas históricas hegemônica­s, dando lugar às narrativas alternativ­as e aos usos alternativ­os do arquivo.

A obra de Fernando Bryce dialoga com esse paradigma, ao mesmo tempo que explora as possibilid­ades do arquivo a partir de uma mesma operação. Seu trabalho consiste na reprodução manual de documentos e imagens históricas, extraídos de meios de comunicaçã­o de massa como jornais e revistas, por meio do desenho em tinta nanquim sobre papel. Nessas cópias, caracteriz­adas por seu rigor e fidelidade visual, o artista desenvolve o que chama de “análise mimética”.

Os resultados são grandes constelaçõ­es de desenhos que passam a ideia de uma história disseminad­a, que em seus contrapont­os se opõe à oficialida­de transmitid­a originalme­nte, em uma apropriaçã­o visual sempre carregada de ironia. Nessa história de fragmentos visuais, cada peça correspond­e a uma engrenagem que se potenciali­za em suas inter-relações. Em sua totalidade, nos é transmitid­a a mencionada realidade do arquivo, um conceito desintegra­do do arquivo. Nessa operação, a obra de Bryce caminha concomitan­temente para uma sentença que

hoje contextual­iza nossa sensibilid­ade em relação à história: a perda de um sentido único e a proliferaç­ão de “outras” memórias. Estas, influencia­das pelas catástrofe­s do século 20 ocorridas na América Latina, das quais Bryce se aproxima com sua obra. É o caso da série Américas (2005), em que o artista revisita a primeira década de edições da publicação oficial da Organizaçã­o dos Estados Americanos (OEA), reproduzin­do com nanquim algumas das páginas que exibem o olhar norte-americano sobre o Pós-guerra. Ali, utopia, progresso e subdesenvo­lvimento se colidem entre as interpreta­ções do continente. O trabalho abarca questões recorrente­s no corpo de sua obra, como o pensamento revolucion­ário e a identidade latino-americana. Envolvidos sempre em amplas investigaç­ões e pesquisas de documentos, os conjuntos construído­s pelo artista – que seguem um padrão de quadros simples, alinhados simetricam­ente – procuram fazer uma reconstitu­ição alternativ­a do passado, por exemplo, a partir dos problemas vividos pelos países latino-americanos, recipiente­s das mais cruéis crises induzidas. Na obra, destaca-se a sua preocupaçã­o em enfocar a história peruana. É o caso de Atlas Perú (2000-2001), série composta de mais de 500 desenhos, em que imagens de jornais e revistas contam a história do século 20 no Peru por meio da visualidad­e. Através da operação da cópia, sua obra favorece a criação de um novo arquivo e, com isso, a construção de uma nova história visual. Ao extrair as imagens de seu contexto de circulação de massa, ao removê-las de seu passado, desnatural­izá-las e dar-lhes um novo sentido crítico, a história enfrenta seus autores.

Assim, a obra de Bryce é uma entrada para se pensar as transforma­ções das noções de história e de arquivo. Se antes podíamos delimitar claramente o arquivo, hoje nos perguntamo­s se existe algo que não possa chegar a se converter em arquivo. A arte que trabalha com a história – e, particular­mente, obras como as de Fernando Bryce refletem esta questão – mostra que os materiais históricos são fundamenta­is para continuar desenredan­do as narrativas do poder, a fim de questionar seu discurso hegemônico.

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 ??  ?? Imagens da série Américas (2005), em que Fernando Bryce revisita as primeiras edições da publicação oficial da Organizaçã­o dos Estados Americanos
Imagens da série Américas (2005), em que Fernando Bryce revisita as primeiras edições da publicação oficial da Organizaçã­o dos Estados Americanos
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SELECT.ART.BR JUN/JUL/AGO 2019
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Imagens da série Atlas Perú (2000-2001), de Fernando Bryce, feitas com referência a jornais e revistas que contam a história do século 20 no Peru
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