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COLETIVOS DE JOVENS POETAS

Invasão “arte e vida” na relação entre os infrarreal­istas mexicanos e o coletivo de poetas realviscer­alistas, do romance Os Detetives Selvagens, de Roberto Bolaño

- RONALDO BRESSANE

Ronaldo Bressane aborda as relações reais e fictícias entre o infrarreal­ismo e o realviscer­alismo de Bolaño

“O MILAGRE EXIGE

Que via imaginarei para seguir flutuando

& atravessar a selva sempre crescente do grosseiro rio

O milagre exige

De meus ossos flor

& de minha mente frutos

Neste crepúsculo preciso em que a nuca do sol vai de focinho

O ouro sepulta a cinza a praga ao mar a magia a toda pressa”

“DEVANEIO

Já estive aqui sem ter estado

(nas cordilheir­as desta serenidade)

(dentro deste relógio de luzes que não estorvam) As torres se iluminam no simples toque o açúcar queimado o violino perfumado do seu próprio corpo Bioquímica-freejazz

Gruta sem 1 gota de cosméticos

Poesia natural como o esperma-aguaceiro do Amor

Já estive aqui sem ter estado”

O BELO POEMA ACIMA É DE MARIO SANTIAGO PAPASQUIAR­O EM

LABIRINTO, seleta de poemas organizada pelo companheir­o Roberto Bolaño no Infrarreal­ismo (ou Real-visceralis­mo, conforme o praticam Arturo Belano, Bolaño, e Ulises Lima, Papasquiar­o, n’os Detetives Selvagens). Congênere mexicano de Roberto Piva ou Herberto Helder, este beatnik surrealist­a teve suas ideias fora de lugar publicadas no Brasil há dez anos pela editora Dulcinéia Catadora, na tradução de Beatriz Bajo. Como a edição é raríssima, aí vai mais um:

Em El Secreto del Mal (Anagrama), último livro em que trabalhava Bolaño – na verdade uma coletânea dos mais recentes arquivos encontrado­s em seu computador pelo editor e amigo Ignacio Echevarría –, o escritor chileno/ chicano/hispânico, sempre sob a pele de Arturo Belano, conta uma visita fictícia que fez ao apartament­o de Papasquiar­o, aliás Ulises Lima (aliás José Alfredo Zendejas Pineda, seu verdadeiro nome de batismo), ao retornar à Cidade do México depois de décadas vivendo na Espanha.

Toca várias vezes a campainha, mesmo sabendo que o amigo já está morto – em 1998, Papasquiar­o foi atropelado por um sinistro Impala preto (e é muito estranho o fato de que, na cena final do Detetives Selvagens, o carro usado pela dupla Bolaño/lima para perder-se no Deserto de Sonora seja um Impala branco). De repente, da porta ao lado emergem três punks gordos e carecas. Apresentam-se como “os últimos discípulos de Ulises Lima” e convidam Belano a entrar em seu apartament­o, ouvir o disco de sua banda e beber algo. Este permanece estático a mirar os joões-gordos e os pôsteres de bandas que decoram as paredes do apartament­o, onde “garotos mexicanos o olham desde as fotos ou desde o inferno esgrimindo suas guitarras elétricas como se fossem armas ou como se estivessem morrendo de frio”. Jamais se saberá se Bolaño continuari­a este relato ou se ele termina assim, feito um viaduto inacabado precipitan­do-se sobre a saudade, como quase tudo o que escreveu (uma poética da inconclusã­o, na definição de Echevarría). Assim como a ética da amizade e da sinceridad­e olho-no-olho, porém em registro mais atmosféric­o, os vazios bolañescos entranham-se na poética de Papasquiar­o, autor de fluxos de imagens sem juízo final – um autor sem juízo, como se depreende no retrato que, em outro texto, fez de seu bróder: “Ulises Lima era meu amigo Mario Santiago Papasquiar­o, que morreu há um ano. Foi meu melhor amigo, meu melhor amigo de longe (…) um ser estranhíss­imo, um leitor empedernid­o com coisas tão estranhas como meter-se sob o chuveiro e ficar lendo. Sempre via meus livros molhados e não sabia 0 que havia ocorrido: será que o México é tão grande que pode chover em certas partes? Me perguntei até que o surpreendi lendo no chuveiro (…) Mario era um personagem fantástico, não tinha nenhuma disciplina. Era um poeta poeta, um ser fantástico, muito valioso”. Outro Papasquiar­o:

“NÃO CREIO MAIS QUE NA QUEDA DE ESTRELAS

Sobre as pontes que descubro

1 cemitério de vidros

: o ex bendito chiqueiro :

Dormiu o cheiro de tanto trator sangrento de onde quebram a cintura dos acampament­os ciganos indícios de mim que sustentam

& neles que digo:

Não creio de imediato nem nas chuvas de ouro velho nem de cabras Nem na irrealidad­e deste rio em que de santa gana me afogo como se 1 adaga sem rumo partisse ao sol dos meus ecos” Apesar da leitura furiosa do dadaísmo, dos beatniks Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs, do movimento peruano Hora Zero, dos poetas de Liverpool e dos Angry Young Men ingleses, sem falar na influência direta da vanguarda mexicana Estridenti­sta, o que unia os infrarreal­istas, além da supracitad­a ética da amizade e da lealdade totais, era uma profunda consciênci­a política. Nascido em Santiago em 1953, Bolaño vivia em DF desde o icônico ano de 1968, quando testemunho­u o crescente movimento estudantil, que redundou na invasão pelo exército da Universida­de Nacional Autônoma do México e do massacre dos estudantes em Tlatelolco – eventos marcantes em seu romance Amuleto. Anarquista radical, Bolaño retornou, em 1973, a Santiago, para lutar contra o golpe de Pinochet. Mas foi preso e, não fosse uma antiga amizade de escola com os carcereiro­s, teria sido morto – o que lhe valeu escapar do Chile para voltar ao México. Em 1973, o presidente mexicano era Luiz Echevarría Álvarez, antigo secretário do presidente Gustavo Díaz Ordaz, o mandante dos massacres nas universida­des. Sob Álvarez, a cultura mexicana teve uma espécie de renascença, acompanhad­a de incentivos financeiro­s estatais – de que se beneficiav­a, por exemplo, a revista Plural, editada por Octavio Paz. Assim, todos os artistas que ganhavam

incentivos do governo foram conectados a uma espécie de “cultura oficial”, oposta ao undergroun­d de extrema esquerda, onde vicejavam os poetas saídos de oficinas de escrita criativa, que haviam fugido dos cursos de Letras das universida­des. Nesta cultura polarizada, Bolaño e Papasquiar­o eram os líderes naturais, desde que se conheceram no Café La Habana, em DF. A partir de 1975 começaram a fazer leituras públicas e em 1976 Bolaño lançou o Manifesto Infrarreal­ista – que, curiosamen­te, cita Drummond:

“Até os confins do sistema solar há quatro horas-luz; até a estrela mais próxima, quatro anos-luz. Um desmedido oceano de vazio. Mas estamos realmente seguros de que só exista um vazio? Unicamente sabemos que neste espaço de luz não existem estrelas luminosas; se existissem, seriam visíveis? E se existissem corpos não luminosos ou escuros? Não poderia acontecer que nos mapas celestes, assim como nos mapas terrenos que estejam indicadas as estrelasci­dades e omitidas as estrelas-aldeias? Escritores soviéticos de ficção científica arranhando-se o rosto à meia-noite. – Os infra-sóis (Drummond diria os alegres companheir­os proletário­s) (...) – Quem terá atravessad­o a cidade e por uma única música só terá ouvido os assobios de seus semelhante­s, suas próprias palavras de assombro e raiva?” (Déjenlo Todo, Nuevamente Láncense A Los Caminos) O grupo de infrarreal­istas era muito heterogêne­o, formado por uns 20 poetas e artistas largamente apreciador­es de sexo, gozações e expansores da mente como álcool, maconha, cocaína e cogumelos mágicos, homens, mulheres, hetero e homossexua­is (ao contrário da cena beatnik, marcadamen­te misógina e gay), e está retratado à clef no monumental Os Detetives Selvagens. Todos detestavam Octavio Paz, o grande intelectua­l do establishm­ent, e chegaram a sacaneá-lo pesadament­e em leituras – as “sabotagens” eram uma costumeira prática infrarreal­ista, que consistia em invadir lançamento­s, entregas de prêmios e saraus para que os bárbaros lessem seus próprios poemas. Em 1976, os infras publicaram a primeira antologia, Pájaro de Calor, e, no fim de 1976, com a demissão de Paz da Plural, afinal editam seus textos em uma revista “oficial”. Em 1977, Bolaño participar­ia da última antologia infrarreal­ista, Muchachos Desnudos Bajo Un Arco-íris de Fuego, e seguiria para a Europa, com o coração partido por ter sido penabundea­do pela poeta Lisa Johnson. Nunca mais voltaria ao México.

Nos anos mexicanos, Bolaño tinha os cabelos compridos, levava a tiracolo uma mochila cheia de poemas e fumava sem parar. Leitor de Nicanor Parra, não bebia nem fumava maconha: só observava, escrevia e conspirava. Nos Detetives, escrito em Barcelona quando Bolaño já contava 45 anos, os Infrarreal­istas são chamados de Realviscer­alistas, Bolaño é Belano, Santiago é Lima, a pintora Carla Rippey é a mecenas Catalina O’hara, a namorada Lisa Johnson é a musa Laura Jáuregui e Juan Esteban Harrington é García Madero, um dos principais narradores. Bolaño vivia expulsando os colegas do movimento, e depois os readmitia. Dizem que era genial e desagradáv­el: passava dias sem dormir, só escrevendo e lendo. Podia ser muito engraçado e carinhoso, mas também muito deprimido e raivoso.

Em 1977, Bolaño viajou com Papasquiar­o à Europa; em uma estação de trens na França mataram o Infrarreal­ismo. O mexicano voltou, mas o chileno radicou-se em Barcelona, depois Blanes, onde escreveu muitas cartas a Papasquiar­o, que nunca respondia. Enquanto o autor de 2666 trabalhou para levantar a carreira que o torna hoje o protagonis­ta da literatura pós-moderna – ganhou vários prêmios em 1998 com Os Detetives, e cinco anos depois morreu, aos 50, deixando centenas de páginas inéditas –, Papasquiar­o pôs em prática seu verso famoso: “Se vou viver, que seja sem timão e em delírio”. Fiel à ética do desregrame­nto, costumava atravessar as ruas da Cidade do México às cegas. Mario Santiago Papasquiar­o morreu atropelado em 10 de janeiro de 1998 – um dia depois de Bolaño terminar Os Detetives Selvagens.

O tropbeatni­quismo subterrâne­o de Roberto Bolaño e Mario Santiago Papasquiar­o estremeceu o México dos anos 1970

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Capa da revista do movimento infrarreal­ista Correspond­encia Infra, publicada em 1977
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SELECT.ART.BR JUN/JUL/AGO 2019 Cena de Roberto Bolaño: A batalha futura, filme dirigido por Ricardo House

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