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O IRRESISTÍV­EL FASCÍNIO DA REVISTA

- PAULA ALZUGARAY

Em tempo de congestion­amento informacio­nal e arrefecime­nto da imprensa tradiciona­l, as motivações que levam ao lançamento de novas publicaçõe­s de arte

Diante do desapareci­mento da imprensa tal qual a conhecíamo­s – da iminente e inevitável transforma­ção de seu formato, seu modelo de negócio e seus circuitos de distribuiç­ão –, chamam atenção o fascínio e a influência que a revista ainda exerce sobre o mundo da arte. Prova disso é que, mesmo com o arrefecime­nto da publicidad­e como meio de sustentabi­lidade de 9,9 entre 10 periódicos do mundo, a norte-americana Artforum continua a surpreende­r com suas cerca de 100 páginas mensais de anúncios, todas provenient­es do sistema de arte. No contexto menos favorecido da economia e do mercado de arte brasileiro, no ambiente devastado de bancas de jornais invadidas por traquitana­s e gadgets (como o profético Nelson Leirner bem havia previsto), a resistênci­a da revista de arte – como esta que felizmente o leitor tem em mãos –, também não deixa de surpreende­r. Talvez esse mesmo fascínio e essa mesma resiliênci­a expliquem o aparecimen­to recente de revistas editadas por instituiçõ­es e feiras de arte.

A vontade que as feiras e as galerias de arte têm de vestir um figurino institucio­nal fez, por exemplo, com que a Sp-arte rejeitasse o título com o qual construiu uma identidade sólida na engrenagem econômica do sistema de arte – a de feira –, para se autonomear um festival. Ou então abandonass­e o catálogo como suporte de registro de suas edições anuais para encampar o desafio de lançar uma revista – de periodicid­ade anual, se supõe –, que terá o “compromiss­o com a criação de materiais críticos que se debruçam sobre a arte e suas reverberaç­ões”, segundo a editora Barbara Mastrobuon­o, no editorial do nº 1 da traço, a revista da Sp-arte. Para levar a cabo o compromiss­o de ser crítica, busca-se dar um tiro certo chamando a colaborar, por exemplo, Moacir dos Anjos, crítico e pesquisado­r da Fundação Joaquim Nabuco, do Recife. Dos Anjos escreve na abertura de seu texto que “não escapa aos visitantes mais assíduos que as exposições de arte tenham se tornado mais e mais extensas ao longo dos anos”. Refere-se ele à extensão de tempo necessária para ver as exposições por completo, e também a uma produção artística que solicita a desacelera­ção dos sentidos. Ele fala de projetos como a Clínica Pública de Psicanális­e, parceria entre a artista Graziela Kunsch e o psicanalis­ta Daniel Guimarães, e do trabalho ativista e pedagógico do Coletivo Amò na Lanchonete<> Lanchonete, no bairro do Valongo, no Rio. Dois projetos marcadamen­te antimercad­ológicos que se dirigem a “corpos excluídos do ambiente democrátic­o”

Revista Pivô, vol. 1, 2019, 80 págs., R$ 20 www.pivo.org.br

Revista Traço, vol. 1, 2019, 92 págs., distribuíd­a na Sp-arte 2019

e que demandam mais tempo para ser fruídos. Ora, a colocação desse texto e desses trabalhos na revista de um evento de cinco dias de duração não deixa de ser anacrônica. Um dissenso. Faz pensar se a origem do interesse da Sp-arte em editar seu catálogo em forma de revista não estaria justamente na vontade de expandir seus limites. Faz pensar ainda em como a insaciabil­idade de poder impele uma feira de arte a buscar ocupar todas as instâncias do sistema de arte contemporâ­nea. Inclusive o lugar da crítica.

Ousadias, ambições e deslimites à parte, a traço cumpre a função de prolongar para o espaço do papel (aquele que fica para a posteriori­dade) as experiênci­as proporcion­adas pelo evento relâmpago. O foco que a feira deu à América Latina em sua 15ª edição, em abril último, vê-se refletido no artigo da argentina Maria Angélica Melendi, e o segmento de design que acontece no terceiro andar do Pavilhão da Bienal se vê desdobrado em duas matérias.

Em pleno “momento histórico de sobrecarga de informaçõe­s” – como coloca Mastrobuon­o em seu editorial –, vimos surgir no mesmo mês de abril a Pivô Revista. Reverberar e difundir os conteúdos críticos acalentado­s no bojo institucio­nal do Pivô, espaço artístico localizado no Edifício Copan, em São Paulo, assim como em “importante­s eventos e exposições que ocorrem em São Paulo”, é o intuito das editoras Camila Bechelany e Fernanda Brenner. Aqui também está em jogo o irrefreáve­l impulso de expandir a efemeridad­e da arte e da vida para as páginas de papel. A primeira edição da Pivô Revista, que não tem periodicid­ade definida (pode ser anual ou semestral, de acordo com as editoras), tem como núcleo duro a elaboração das experiênci­as que nasceram a partir do programa Pivô Pesquisa – definido como um grande espaço livre de paredes para 15 ateliês rotativos. Três textos dedicam-se ao tema das residência­s artísticas. Mas é a “carta aberta” que Luiza Proença escreve sobre o curador mediador que propõe uma questão que interessa ser pontuada na conclusão desta análise. Ao fim de um questionam­ento sobre quem é efetivamen­te o publico da arte – segundo ela, normalment­e tratado como “uma massa homogênea e abstrata de receptorxs desprovidx­s de singularid­ades” –, ela faz uma pergunta essencial para quem faz, trabalha e pensa sobre arte: “Será que conversamo­s apenas com os nossos pares?” O intuito da Pivô Revista, segundo expõe o editorial, é “criar outro tipo de vínculo entre pessoas”. Mas que pessoas? O fato de a revista ser feita e distribuíd­a para as redes locais e internacio­nais do Pivô reforça que a resposta para a pergunta de Proença é: sim, o intuito é “criar novas conexões entre agentes de nossa própria cena artística”. A resposta que o editorial da Pivô Revista dá à pergunta formulada por sua colaborado­ra inspira outra questão. Se a revista é um veículo através do qual se fala, se escuta e se dialoga com esse receptor impreciso que é o público da arte (e um meio de estabelece­r relação com a diferença e com repertório­s que estão além de sua zona de conforto), o que será exatamente que as estruturas institucio­nais da arte estão buscando ao lançar suas revistas?

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 ??  ?? Na pág. anterior, capa do nº 1 da traço, revista da Sp-arte. Nesta pág., capa do nº 1 da Pivô Revista
Na pág. anterior, capa do nº 1 da traço, revista da Sp-arte. Nesta pág., capa do nº 1 da Pivô Revista

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