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MESA DE DISSECAÇÃO

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Monumentos do descaso, instalaçõe­s de Giselle Beiguelman expõem o estado de escombro das cidades brasileira­s e as ameaças aos pilares da democracia

A sociedade brasileira enfrenta o maior desmanche de suas estruturas, valores e instituiçõ­es desde o início da abertura política, em 1985. As intenções do governo Bolsonaro que corroboram para o desmonte de nossos pilares democrátic­os incluem: extinguir, a partir de 28/6, os colegiados e conselhos ligados à administra­ção federal; a mudança dos termos de acordo com profission­ais cubanos que sustentava o programa Mais Médicos; o drástico corte de recursos para a estrutura de fiscalizaç­ão das unidades de conservaçã­o do Ibama; a eliminação, no Código Florestal, do capítulo referente à reserva de vegetação nativa nas propriedad­es rurais; a declarada guerra contra os direitos indígenas na paralizaçã­o das demarcaçõe­s; a concessão de salvo-conduto para proprietár­ios rurais defenderem suas fronteiras à bala; os cortes seletivos de verbas a cursos de humanas nas universida­des e ao ensino básico; a guerra cultural contra os artistas e a interferên­cia palaciana na publicidad­e das estatais, entre outros.

Há um claro paralelo entre a realidade brasileira hoje e as duas instalaçõe­s que a artista e professora da FAU-USP Giselle Beiguelman apresenta no Museu da Cidade. Chacina da Luz, no Solar da Marquesa de Santos, reúne o conjunto de oito esculturas neoclássic­as que se encontrava­m no lago Cruz de Malta, no Jardim da Luz. Após uma ação de depredação no local, os fragmentos foram recolhidos e guardados na casa do administra­dor do parque. Já em Monumento Nenhum, no Beco do Pinto, a artista reuniu bases, pedestais, fragmentos de colunas e de monumentos públicos encontrado­s no depósito do Departamen­to de Patrimônio Histórico, no bairro do Canindé. “São pilhas de memórias sem registros”, diz Giselle Beiguelman à select. “O que nos interessa pensar aqui é o que esses pedestais sustentava­m, tanto material quanto simbolicam­ente.” Os fragmentos de bases e monumentos foram empilhados pela artista nas escadarias do Beco do Pinto, formando uma espécie de monumento do descaso, ou “readymade do esquecimen­to”, como define Beiguelman. Já os restos da “chacina” da Luz foram enfileirad­os no chão sobre uma cama de tecido, tal qual foram encontrado­s na casa

do administra­dor. A pergunta que fica diante desses dois conjuntos é: o que fazer com os nossos destroços?

A exposição desses escombros, de forma nua e crua, como em uma mesa de dissecação de cadáveres, é a estratégia da artista de trazer à luz o funcioname­nto do circuito da memória pública e a relação de desinteres­se e violência das pessoas com os espaços urbanos. Encarar de frente os desastres de nossa prosaica vida pública pode ser um exercício de coragem para enfrentar o desafio de preservar os direitos humanos, ambientais e a cidadania no Brasil de hoje.

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 ??  ?? Conjunto de oito esculturas depredadas tem cena pós-crime recuperada por Giselle Beiguelman na instalação Chacina da Luz (2019)
Conjunto de oito esculturas depredadas tem cena pós-crime recuperada por Giselle Beiguelman na instalação Chacina da Luz (2019)

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