HISTÓRIAS PRA NINAR GENTE GRANDE
O SAMBA-ENREDO QUE DEU A VICTÓRIA Á ESCOLA DE SAMBA ESTAÇÁ PRIMEIRA DE MANGUEIRA NO CARNAVAL DESTE ANO, NO RIO DE JANEIRO, TRAZ UMA SÉRIE DE REFERÊNCIAS HISTÓRICAS
que nem todos os brasileiros aprenderam na escola. Por isso é necessário decodificar a sua letra. Para que o Brasil conquistasse a independência e abolisse a escravidão, muitas mulheres, negros e índios precisaram lutar e morrer. São alguns desses heróis e heroínas que a Mangueira ilumina, em vez dos príncipes, princesas e generais que ainda hoje dão nome às nossas ruas, avenidas, pontes e estradas. Oficialmente, os autores da composição são Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino. Extraoficialmente, aparece também como coautora Manu da Cuíca, que não assinou por já estar concorrendo em outra escola. Salve a Mangueira, pela aula de História!
RETINTO
Tinto novamente, que tem cor carregada. Dizia-se dos negros muito negros. A música refere-se ao fato de que muitos dos “heróis” brancos retratados nos livros de História do Brasil se fizeram à custa do sangue dos negros, sem os quais a economia, a cultura e o sistema político do País não teriam se desenvolvido.
TAMOIOS
Referência a uma notável aliança de povos indígenas do século 16, no Sudeste brasileiro. Liderada pela nação Tupinambá, a chamada Confederação dos Tamoios resistiu por décadas aos portugueses, que queriam escravizar os índios para o trabalho nas plantações de cana-de-açúcar.
HERÓIS DE BARRACÕES
Barracão é o nome que se dá ao local onde os integrantes de uma escola de samba se encontram, criam, ensaiam e montam os carros alegóricos que serão usados nos desfiles de Carnaval.
LECIS, JAMELÕES
Mangueira, tira a poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões São verde e rosa, as multidões Brasil, Deixa eu meu te contar nego A história que a História não conta O avesso do mesmo lugar Na luta é que a gente se encontra Brasil, A Com Mangueira versos meu que dengo chegou o livro apagou Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato
A compositora e cantora Leci Brandão (1944), atual deputada estadual (PCDOBSP), e o cantor Jamelão (1913-2008), lendário puxador de sambas da Mangueira, onde atuou de 1949 a 2006, são citados como músicos e heróis do barracão da escola.
MULATOS
Há duas teorias para a origem do termo que designa as pessoas que descendem de africanos e europeus. Do latim mulus (mula), é uma analogia ao animal que nasce do cruzamento de cavalo com jumenta ou de jumento com égua, por isso o termo é considerado pejorativo. Outra teoria é que mulato provém do árabe mowallad, que seria o nascido de pai árabe e mãe estrangeira.
MARIAS
Maria Filipa de Oliveira (?-1873), marisqueira e pescadora da Ilha de Itaparica (Bahia), descendente de negros escravizados do Sudão, lutou pela Independência da Bahia. Um dos feitos de Filipa foi liderar um grupo de 200 pessoas, entre as quais negras e índios Tupinambás e Tapuias, contra os portugueses. Seu grupo queimou 40 embarcações portuguesas que atacavam a ilha. Outra Maria que se destacou na luta pela Independência da Bahia foi Maria Quitéria de Jesus Medeiros, que se vestiu de homem para lutar no Exército pela expulsão dos portugueses. Apenas em 2018 Maria Filipa e Maria Quitéria tornaram-se oficialmente heroínas da Pátria.
DRAGÃO DO MAR
O jangadeiro mestiço Francisco José do Nascimento, também conhecido como Chico da Matilde ou Dragão do Mar, era de Canoa Quebrada, no município de Aracati, Ceará. Ele recusou-se a transportar para os navios negreiros os escravizados vendidos para o Sul e liderou uma greve no mercado escravista do Porto de Fortaleza, em 1881. A abolição da escravatura naquela região ocorreu quatro anos antes da Abolição no restante do Brasil.
CABOCLOS DE JULHO
O Caboclo e a Cabocla são imagens usadas em cortejos nas festividades de 2 de Julho em Salvador, Bahia. Personagens anônimos, representam a vitória nas guerras de Independência, quando descendentes de índias com portugueses (os chamados caboclos) integraram batalhões juntamente com negros escravizados e libertos, sertanejos e outros voluntários que lutaram em 1824 e expulsaram os portugueses de Salvador. Paramentado como guerreiro, o Caboclo esmaga a seus pés uma serpente, representando a tirania e dominação portuguesas.
Brasil, o teu nome é Dandara E a tua cara é de Cariri Não veio do céu Nem das mãos de Isabel A liberdade é um dragão no mar de Aracati Salve os caboclos de julho Quem foi de aço nos anos de chumbo Brasil, chegou a vez De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês
MAHINS
Pertencente à tribo Mahi, da nação africana Nagô, Luiza Mahin nasceu no começo do século 19 em Costa Mina e foi trazida ao Brasil escravizada. Esteve envolvida na articulação de todas as revoltas e levantes de escravos na então Província da Bahia. Era quituteira e de seu tabuleiro saíam mensagens em árabe que alimentaram a Revolta dos Malês (1835). Também participou da revolta separatista Sabinada (18371838). É mãe do poeta e abolicionista Luiz Gama. Apenas em 2017 surgiu o projeto de lei para inscrever os nomes de Dandara dos Palmares e de Luiza Mahin no Livros dos Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade em Brasília. Aprovado, o projeto foi para sanção presidencial em abril deste ano.
DANDARA
Guerreira negra do século 17, líder quilombola e capoeirista, foi companheira e mãe de três filhos de Zumbi dos Palmares. Depois de presa, matou-se ao se jogar de uma pedreira para não retornar à condição de escrava. Dandara dos Palmares hoje é oficialmente uma heroína da luta contra a escravidão no Brasil.
CARA DE CARIRI
Referência aos índios Cariris, do norte do Rio São Francisco, e sua resistência à colonização portuguesa. A Confederação dos Cariris ocorreu entre 1683 e 1713, estendendo-se do Ceará ao Rio Grande do Norte e à Paraíba.
ANOS DE CHUMBO
Referência à mais dura fase da ditadura militar brasileira, entre 1968 e 1975, quando houve o desaparecimento, tortura e assassinato de centenas de militantes civis e ativistas considerados subversivos pelo governo. O aço representa a resistência à ditadura.
MARIELLES
Marielle Franco (1979-2018), nascida em favela do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, foi socióloga formada pela PUC, feminista, bissexual e defensora dos direitos humanos. Era vereadora pelo PSOL quando foi assassinada a tiros, juntamente com seu motorista.
MALÊS
Revolta dos Malês foi uma rebelião ocorrida em Salvador em 1835, no fim do mês sagrado do Ramadã. Malê é uma corruptela de imalê, que quer dizer muçulmano em iorubá. Os malês eram afro-muçulmanos bilíngues de diferentes etnias, dominavam o árabe escrito e queriam implantar na Bahia uma nação Malê. Quando o motim foi controlado, 70 revoltosos foram mortos, 300 foram presos e julgados e as penas variaram de açoites, trabalhos forçados, deportação e pena de morte. Os africanos muçulmanos foram proibidos de circular à noite em Salvador e de praticar sua religião. Naquela época, Salvador tinha cerca de 65 mil habitantes, 4 em cada 10 eram escravos e os brancos não passavam de 20%.