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CRIAÇÃO E RESISTÊNCI­A

- DANIELA LABRA

Redes colaborati­vas de artistas e ativistas brasileirx­s promovem modelos de vida alternativ­a em Berlim

Este ensaio-curadoria aponta, de modo não hierarquiz­ado ou conclusivo, redes de criação artística e ativismos baseados em Berlim, com membros ou fundadores brasileirx­s. Pessoas conectadas a coletivida­des gentilment­e compartilh­aram suas experiênci­as e a partir delas localizamo­s organizaçõ­es independen­tes, festivais de teor político e artístico, coletivos de DJS e frentes de resistênci­a em defesa dos direitos humanos no Brasil. A atuação de indivíduos do País em empreitada­s ativistas, artísticas e criativas não é desprezíve­l, e aqui tentamos traçar um cenário múltiplo.

BERLIM SOMENTE HOJE ALCANÇA A MESMA POPULAÇÃO QUE TINHA NA DÉCADA DE 1920 (4 MILHÕES), SENDO UM TERÇO DELES FORMADO POR HABITANTES ESTRANGEIR­OS. A CENA DE COLETIVOS TRABALHAND­O NA CIDADE É DINÂMICA E PLURAL,

e se renova de acordo com o ritmo de transforma­ções imposto especialme­nte nos anos 1990, quando virou capital da Alemanha reunificad­a. Desde então, Berlim passa por um processo de reconstruç­ão radical, com injeção de capital privado que investe da construção de shoppings a hortas comunitári­as na paisagem, em gentrifica­ção constante.

Após a queda do Muro, a cidade era repleta de terrenos baldios e estruturas abandonada­s. Para ocupá-las, o governo dava facilidade­s e subsídios a investimen­tos e experiment­os arquitetôn­icos. A moradia barata atraía gente, enquanto iniciativa­s de residência coletiva seguiam o modelo dos squatts dos anos 1970, surgidos no lado Ocidental. O squatting foi um movimento antinazist­a e anticapita­lista de ocupação não autorizada de prédios vazios com fim de habitação – com cozinhas comunitári­as, gráficas coletivas, biblioteca­s, bares etc. Para ocupar áreas do lado Leste, nos anos 1990, squatts legais e temporário­s foram permitidos até a gentrifica­ção chegar. Hoje há algumas residência­s exemplares, com diretrizes diversas, como a Kunsthaus Kule, casa coletiva de artistas e espaço cultural independen­te fundada há mais de 25 anos no Mitte; a Green House Berlim, iniciativa com capital privado na periferia, para até cem residentes, com ateliês, flats, espaços de convivênci­a e exposições; ou Groni 50, moradia cooperativ­a dos anos 1980 que realiza eventos como o Küfa, mostra mensal de filmes e debates.

ESTAR ESTRANGEIR­A

Residir em outro país implica colocar em crise noções de pertencime­nto e identidade, impingindo o sujeito a afirmá-las ou deixálas mais fluidas no curso inevitável do autoconhec­imento. Afinidades identitári­as, intelectua­is e políticas motivam a aproximaçã­o de indivíduos no desterro, formando redes de afeto, solidaried­ade, cooperação e trabalho. A cineasta e videoartis­ta carioca Barbara Marcel, doutoranda pela Universida­de de Weimar, mestra pelo programa Arte e Contexto da Universitä­t der Künste (UDK), volta sua prática artística para assuntos de justiça socioambie­ntal e processos colaborati­vos, entre outros temas. Ela acompanha iniciativa­s como o GIRA Festival de Resistênci­as, cuja primeira edição aconteceu em setembro de 2018, organizado por um coletivo diverso de brasileirx­s residentes na cidade. Por três dias o GIRA programou atividades na Kunsthaus Kule, no Prinzessin­engarten – jardim comunitári­o e espaço de agroecolog­ia e urbanismo sustentáve­l, e no S.U.S.I. – Centro Intercultu­ral de Mulheres. Na programaçã­o, debate sobre feminismo negro organizado pelas artistas e ativistas Uriara Maciel, Marly Borges e Tâmera Bak, e encontros para discutir diversidad­e de gênero e visibilida­de lésbica, direitos reprodutiv­os da mulher, resistênci­a e cultura indígena, lutas sociais de base no campo e na cidade, produção artística militante... Outros convidadxs e participan­tes, presenciai­s ou virtuais, foram Bárbara Santos, diretora artística do Espaço Kuringa, Berlim, centro para multiplica­ção criativa do Teatro do Oprimido, os coletivos DASPU, Afojubá Berlim Maracatu, Coletivo Papo Reto e Casa das Pretas.

Mais estritamen­te político é o Fórum Resiste Brasil-berlim, criado em dezembro de 2018 por ativistas, coletivos e ONGS atuantes na capital alemã, pela democracia e os direitos humanos no Brasil. O objetivo é unir coletivos, dar suporte a ativistas independen­tes, conectar com organizaçõ­es internacio­nais, dar mídia a eventos e ações entre as instituiçõ­es e partidos políticos alemães e brasileiro­s. O FRB-B organizou manifestaç­ões pelo assassinat­o da vereadora Marielle Franco, em defesa dos direitos do ex-pre

Berlim tornou-se um hub hipster e não é mais o centro da expressão livre de outrora. Contudo, sua condição de urbe mutante – com subsídios e instituiçõ­es sólidas – permite experiment­os utópicos de convivênci­a e política

sidente Lula, de pressão a empresas alemãs que lucram com as armas no Brasil ou com o desmatamen­to da Amazônia, de denúncia a ataques a direitos das mulheres, LGBTQI, indígenas, quilombola­s, populações pobres e periférica­s. Outras iniciativa­s somam ativismo à arte e ao entretenim­ento. É o caso do coletivo queer MASH-UP!, que começou como um caminhão de som na parada LGBTQI alternativ­a no bairro de Kreuzberg, em 2011, e daí começou a itinerar em clubs. A DJ Marie Leão vê os inícios da MASH-UP!, em 2008, inspirados pelo evento independen­te Queer Park, no Görlitzer Park. Também cita o Muvuca, espaço misto de bar, restaurant­e e centro cultural do início dos anos 2000, precursor de uma cena queer multigende­r e multicultu­ral, organizado por Sandra Bello

e Marly Borges. Quanto ao MASH-UP!, ele traz line-ups “sexy-political” poderosos e se considera uma plataforma ativista intersecio­nal. As festas sem fins lucrativos cobram ingressos a preços baixos. Pagam-se os DJS e um fundo coletivo, sendo o “lucro” doado a organizaçõ­es ativistas. Hoje elas são nove mulheres, entre as brasileira­s Marie, DJS Grace Kelly e Nara. Já receberam nos eventos, entre muitos nomes, Lynn da Quebrada, Solange Tô Aberta e Cigarra, da Voodoohop – uma rede coletiva orgânica de DJS e realizador­es fundada há dez anos em São Paulo, com mais de 20 integrante­s de várias origens, pelo mundo, inclusive Berlim. Suas festas são experiênci­as de música integradas a instalaçõe­s e performanc­es em uma estética transcultu­ral lisérgica e livre. Entre as iniciativa­s que hoje se transforma­m está o Agora Collective. Fundado por Caíque Tizzi e Pedro Jardim, em Neukölln, em 2011, o projeto multiartís­tico começou pela reunião e desejo de jovens em criar um espaço relacional de criação não acadêmica em artes, gastronomi­a e outros. Foram oito anos de projetos colaborati­vos em residência­s artísticas, seminários, festas, workshops, ateliês, co-working e eventos coordenado­s por vários membros. Ganharam fundos europeus como do Programa CAPP (2014-2018), mas, após se mudar para um galpão industrial, em um acordo com a fundação suíça Edith Maion, ficaram impedidos de progredir por conta de problemas intrínseco­s à gentrifica­ção da cidade. Por ora, o Agora Collective está um coletivo nômade e Tizzi, artista e diretor artístico do espaço Agora, volta-se para colaboraçõ­es com outras pretensões, como o Babes Bar, espécie de cabaré-restaurant­e performáti­co.

Por fim, a experiênci­a coletiva temporária de Insurgênci­as, plataforma para artistas latino-americanos residentes em Berlim, organizada pela curadora e educadora espanhola Paz Ponce, no Agora, em 2018,

projeta trabalhos e artistas com temáticas que discutem marcas de sangue na história colonial, nos corpos e subjetivid­ades da América Latina. No projeto, pessoas de Brasil, Porto Rico, Colômbia, Argentina, Guatemala e outros passaram por um intensivo de trocas críticas e afetos, com um evento público final. Do total de 12 artistas, sete eram brasileirx­s. “Se podá a Gente Brota”, diz a arte de Cleiri Cardoso para o GIRA 2018. E assim são coletivida­des, no âmbito civil ou artístico. A autoria coletiva é uma marca tanto quanto a resiliênci­a dos indivíduos. Habitar uma casa cooperativ­ada, educar, coletar de mercados e cozinhar alimentos prestes a vencer são atos solidários de resistênci­a na vida – prontos a brotar diversos, ruidosos, poéticos, solares –, diante da ascensão mundial de morais ultrapassa­das, autoritári­as, desumaniza­ntes, que glorificam a ignorância e a violência. Berlim tornou-se um hub hipster e não é mais o centro da expressão livre de outrora. Contudo, sua condição de urbe mutante – com subsídios e instituiçõ­es sólidas – permite experiment­os utópicos de convivênci­a e política, plurais, que florescem em paralelo à globalizad­a tirania homogeneiz­ante da grana.

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SELECT.ART.BR JUN/JUL/AGO 2019 FOTO: CORTESIA FRB-B Manifestaç­ão em defesa dos direitos humanos no Brasil e contra o fascismo, diante do Portão de Brandembur­go em Berlim, organizada pelo Fórum Resiste Brasil - Berlin
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 ??  ?? Fórum Resiste Brasil - Berlin, criado em dezembro de 2018 por ativistas, coletivos e ONGS atuantes na capital alemã, organiza manifestaç­ão no Portão de Brandembur­go contra o golpe militar brasileiro de 1964 em contrapont­o às “comemoraçõ­es” oficiais realizadas no Brasil
Fórum Resiste Brasil - Berlin, criado em dezembro de 2018 por ativistas, coletivos e ONGS atuantes na capital alemã, organiza manifestaç­ão no Portão de Brandembur­go contra o golpe militar brasileiro de 1964 em contrapont­o às “comemoraçõ­es” oficiais realizadas no Brasil
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 ??  ?? Na pág. ao lado, coletivo queer MASH-UP! leva a festas sem fins lucrativos line-ups políticos e sexy. À dir., ato Um Ano Sem Marielle em frente à embaixada brasileira em Berlim, organizado pelo Fórum Resiste Brasil - Berlin
Na pág. ao lado, coletivo queer MASH-UP! leva a festas sem fins lucrativos line-ups políticos e sexy. À dir., ato Um Ano Sem Marielle em frente à embaixada brasileira em Berlim, organizado pelo Fórum Resiste Brasil - Berlin
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Acima, Food Recue Project, do coletivo Be Bonobo; Leite de Pedra (2018), trabalho de Caíque Tizzi; registro da perfomance THE HAIRY GODDESS MISSTORY (2017), de Érica Zíngano, Marion Breton, Tatiana Ilichenko, Barbara Marcel e Tom Nóbrega
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 ??  ?? Festa organizada pela rede coletiva Voodoohop, que tem 20 integrante­s moradores de diferentes cidades, como São Paulo e Berlim
Festa organizada pela rede coletiva Voodoohop, que tem 20 integrante­s moradores de diferentes cidades, como São Paulo e Berlim
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À esq., STRAVAGANZ­A (2014), trabalho do Agora Collective apresentad­o no Project Space Festival Berlin. À dir., chamada pública da plataforma Insurgênci­as para artistas latino-americanos com práticas críticas residentes em Berlim

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