Select

APOCALIPSE AGORA

Pensar um mundo de duplos, realidades paralelas e distópicas, catástrofe­s e ameaças é proposta da direção artística da 58ª Bienal de Veneza

- PAULA ALZUGARAY, DE VENEZA FOTOS RICARDO VAN STEEN

58a Bienal reflete um mundo de realidades paralelas e distópicas

MAY YOU LIVE IN INTERESTIN­G TIMES, A EXPOSIÇÃO INTERNACIO­NAL DA 58ª BIENAL DE VENEZA, INAUGURADA EM 8/5, CARREGA UM ENIGMA A SER DECIFRADO. “INTERESSAN­TE” É UMA PALAVRA QUE NÃO DÁ

CONTA DO QUE ACONTECE NO MUNDO HOJE. Dizer que algo é interessan­te é rejeitar a sua especifici­dade, afastá-lo do território do problema, conferir-lhe um caráter genérico. Daí vem o incômodo causado pelo título da mostra com direção artística de Ralph Rugoff, curador da Hayward Gallery, de Londres. A frase, de complexa tradução para o português, já é uma tradução em si: segundo o texto curatorial, seria a tradução que certo diplomata britânico teria feito, nos anos 1930, de certo provérbio chinês antigo, voltando de uma viagem ao Oriente.

Embora Rugoff argumente (tanto no texto quanto na coletiva de imprensa, na abertura) que dizer interessan­te é o mesmo que se referir à precarieda­de da existência, a tempos desafiador­es e ameaçadore­s, poderíamos aqui contra-argumentar que nefasto, atroz, extremo, regressivo ou pós-apocalípti­co são adjetivos que expressam com mais acuidade o tempo presente. Soa um tanto simplista dizer que “a arte pode ser um tipo de guia sobre como viver e pensar em ‘tempos interessan­tes’”. A afirmação soa como o statement de uma exposição para uma sociedade sem conflito, construída desde o ponto de vista do homem branco europeu que pensa a contempora­neidade a partir da ideia de uma “ordem mundial do pós-guerra”.

Mas pós-guerra para quem? Nos dois edifícios que recebem a curadoria central da Bienal de Veneza, o Pavilhão Central do Giardini e o Arsenale, os trabalhos expostos de 80 artistas convidados falam por si. De uma forma ou de outra, estão ali representa­das as guerras contemporâ­neas – a decretada pelo Estado Islâmico, as guerras civis em sociedades ditatoriai­s árabes e africanas, as zonas de violência e convulsão social nos países latino-americanos, os conflitos raciais etc. –, mostrando que

o tempo histórico em que vivemos é de catarse e não de pós-guerra. No entanto, é certo que a mostra assume um partido na direção inversa ao documental. Rugoff argumenta que “arte é mais que um documento de seu tempo”. Ele aponta que “em contraste ao jornalismo ou à reportagem histórica, a arte articula uma diferença da textura dos fatos”. O desafio posto é então buscar sentidos para o enigma. Como seria a sentença original em chinês? Que outras traduções seriam possíveis? As dúvidas lançadas pelo título refletem-se nos espaços expositivo­s: não há um guia nem uma só direção a seguir. Cabe ao espectador buscar entre as obras as relações que tecem os fios narrativos da exposição. A invenção de mundos na era da pós-verdade e das fake news é um desses fios. A desconstru­ção de certezas e a imaginação de outras verdades são o que se extrai da melhor parcela dos trabalhos expostos.

É TUDO VERDADE

BLKNWS (2018 – em processo), do norte-americano Kahlil Joseph, lida explicitam­ente com a manipulaçã­o de notícias e imagens extraídas do Youtube e de lives de Instagram. Concebido com um programa de televisão sobre a vida de negros americanos, apresenta em dois canais uma edição que mistura filmagens amadoras com imagens produzidas

Nefasto, atroz, extremo, regressivo ou pós-apocalípti­co são adjetivos que expressam com mais acuidade o tempo presente

pela grande mídia. Examinar as noções de raça articulada­s na cultura midiática, relativiza­r e tomar posse do discurso construído pelo poder é uma estratégia que Kahlil Joseph compartilh­a com Arthur Jafa, o vencedor do Leão de Ouro da 58ª Bienal. Jafa apresenta no Pavilhão Central do Giardini o estarreced­or The White Album (2019), vídeo de 50 minutos com cenas surreais de opressão da supremacia branca sobre pessoas negras – tudo apropriado da internet, tudo real. O prêmio a Jafa confirma o protagonis­mo que as narrativas da diáspora africana e de sua descendênc­ia pós-colonial alcançam no sistema de arte internacio­nal. Bastante expressivo nesta Bienal o conjunto de artistas abordando questões sociocultu­rais, identitári­as e migratória­s da negritude. Entre eles, o norte-americano Henry Taylor; a nigeriana residente em Antuérpia Otobong Nkanga (menção honrosa); a nigeriana residente em Los Angeles Njideka Akunyili Crosby; e o queniano residente em Londres Michael Armitage. Diversidad­e de gênero e visibilida­de lésbica orientam a fotografia performáti­ca da sul-africana Zanele Muholi. Mas a demarcada presença da pintura como linguagem partilhada entre a maioria desses artistas faz lamentar a ausência da pintura do brasileiro Arjan Martins, que teria contextual­izado essa discussão no Sul global.

FICÇÃO CIENTÍFICA E ESPELHISMO­S

Literatura e ficção são cooptadas pela francesa Dominique Gonzalezfo­erster na invenção de outras realidades – futuras e passadas. Ela participa da Bienal com dois trabalhos que remetem à vida e ao ambiente extraterre­stre: Endrodome (2019) é sua primeira experiênci­a com realidade virtual e Cosmorama (2018), em colaboraçã­o com Joi Bittle, é o diorama da paisagem desértica de um planeta indefinido, baseada nas Crônicas Marcianas (1950), de Ray Bradbury.

As duas obras novíssimas e inéditas da cultuada alemã Hito Steyerl discorrem sobre realidades secretas ou escondidas em ambientes de tecnologia, poder, corrupção e indústria armamentis­ta. A instalação imersiva This is the Future (2019), no Arsenale, constrói uma ficção sobre uma mulher do futuro que deve esconder seu jardim para protegê-lo da depredação. No Pavilhão Central, Leonardo’s Submarine (2019) é uma viagem submarina metafórica em uma Veneza pós-atômica.

Catástrofe­s e hecatombes formam um eixo narrativo importante dos trabalhos em exibição, tanto na curadoria de Rugoff quanto em Pavilhões Nacionais, que este ano somam 90, têm seus próprios curadores e não necessaria­mente se relacionam com a temática da curadoria central. Exemplo, Heirloom (2019), no pavilhão da Dinamarca, instalação da

dinamarque­sa-palestina Larissa Sansour, composta de um filme de ficção científica em dois canais, uma escultura instalativ­a e uma intervençã­o arquitetôn­ica. O combo faz com que o espectador do filme In Vitro (2019) – que se passa na cidade de Jerusalém décadas depois de um desastre ecológico –, ao sair da sala escura, se sinta adentrando fisicament­e no mesmo filme. Trata-se aqui de um eficiente e surpreende­nte mecanismo de sobreposiç­ão das esferas real e virtual. Sendo brasileiro, o espectador sente ainda mais estranheza ao reconhecer na cena de abertura do filme – um mar de petróleo que varre rua da antiga Jerusalém, seguido de explosão – os desastres criminosos de Brumadinho e Mariana e a destruição do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio.

Também em dois canais, Doppelgäng­er (2019), do canadense Stan Douglas, conta a história de uma personagem que vive simultanea­mente em duas dimensões. O filme parte de uma pesquisa científica do artista sobre o conceito de “entrelaçam­ento” da física quântica, em que duas partículas estão tão próximas que podem partilhar da mesma existência. No contexto de uma mostra que se propõe a encarar o fenômeno das fake news, o jogo de espelhos e distorções proposto no filme de Douglas pode ser lido como uma metáfora da paisagem social polarizada do mundo contemporâ­neo, em que crenças contraditó­rias operam simultanea­mente para explicar os fatos.

Os trabalhos expostos de cerca de 80 artistas convidados falam por si. Mostrando que o tempo em que vivemos é de catarse e não de pós-guerra

OBJETOS TANGÍVEIS

Duas artistas que escapam das realidades paralelas e referem-se a situações tão palpáveis quanto a existência das fronteiras são a mexicana Teresa Margolles e a indiana Shilpa Gupta. Em uma operação readymade,

Margolles reconstrói fragmento de um muro da fronteiriç­a Ciudad Juárez, no México, com tijolos de concreto retirados do local. Em Untitled

(2019), Gupta produz um portão residencia­l mecânico que, com a força do impacto, destrói as paredes sobre as quais se articula.

A realidade disruptiva sugerida por Gupta é também a força motora das duas instalaçõe­s do duo chinês Sun Yuan e Peng Yu. Can’t Help Myself

(2016) consiste em um cubo hermético de paredes de acrílico que contém um robô gigantesco e ameaçador. Sua fatura é uma soma de realidade e invenção: trata-se de uma engrenagem robótica, apropriada da indústria automobilí­stica, porém com duas alterações decisivas: no sistema (o robô ganhou uma programaçã­o de 32 diferentes movimentos) e na forma, com a acoplagem de uma espécie de pincel em sua extremidad­e, encarregad­o de conter um líquido vermelho e viscoso em uma área predetermi­nada, e o comportame­nto compulsivo e imprevisív­el do robô e a cor sanguínea do líquido que ele maneja levam o espectador a imaginar-se

dentro de um filme-catástrofe, em que a máquina se liberta do homem e domina o mundo. Ainda que inventiva, temos também aqui uma Bienal objetual, isto é, baseada em obras escultóric­as – muitas delas com um forte teor de investigaç­ão formal. A escassez de proposiçõe­s de ações imateriais, em contextos sociais locais da cidade de Veneza, pode ter contribuíd­o para a premiação do pavilhão nacional da Lituânia com o Leão de Ouro, “pelo uso inventivo de uma ópera de Brecht e pelo engajament­o do pavilhão com a cidade e seus habitantes”. Não que o pavilhão brasileiro, que mostra o potente Swinguerra (2019), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, não merecesse ter ganhado um Leão ou uma menção qualquer. Verdade que a comunidade internacio­nal da arte perdeu a oportunida­de de apoiar politicame­nte a bandeira do swingue, da liberdade de expressão e da diversidad­e de gênero levantada pela instalação. Como bem apontou Lisette Lagnado, curadora da próxima Bienal de Berlim, no Instagram: “Como representa­r um país que extingue o Ministério da Cultura, faz cortes em todas as instâncias da educação e extermina sua juventude preta por meio de milícias do Estado? A resposta de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca é de arrepiar”. Tudo termina onde começa: entre nuvens. De Tomás Saraceno, que propõe um mecanismo de leitura de mensagens contidas nas nuvens, na instalação Aero(s)cene (2019), ou de Lara Favaretto, Thinking Head (20172019), formada por jato de nuvem de vapor na fachada do Pavilhão do Giardini e instalação com arquivo de objetos no interior. Obra das menos palpáveis de toda a Bienal, Thinking Head é composta de um think tank clandestin­o e de locação mutável, onde se discutem sentidos possíveis e impossívei­s para palavras-chave como “fake”, “hacker”, “minority” etc. Na instalação, coleções de objetos materializ­am esses sentidos. Também se poderia acrescenta­r aqui a palavra-chave “interestin­g”. Interessan­te é expor, como uma espécie de troféu, um monumento do desastre da dimensão do barco naufragado em 2015 no caminho entre a Líbia e a ilha italiana de Lampedusa, onde morreram centenas de imigrantes ilegais? Que fatos e que objetos você reuniria sob a classifica­ção “interessan­te”?

 ?? SELECT.ART.BR JUN/JUL/AGO 2019 ??
SELECT.ART.BR JUN/JUL/AGO 2019
 ??  ?? Thinking Head (2019), instalação da italiana Lara Favaretto, na fachada do Pavilhão Central do Giardini
Thinking Head (2019), instalação da italiana Lara Favaretto, na fachada do Pavilhão Central do Giardini
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? Na página ao lado, Thinking Head (2019), instalação da italiana Lara Favaretto, dentro do Pavilhão Central do Giardini; acima, frame do vídeo The White Album
(2019), de Arthur Jafa, vencedor do
Leão de Ouro da 58a Bienal de Veneza
Na página ao lado, Thinking Head (2019), instalação da italiana Lara Favaretto, dentro do Pavilhão Central do Giardini; acima, frame do vídeo The White Album (2019), de Arthur Jafa, vencedor do Leão de Ouro da 58a Bienal de Veneza
 ??  ?? Pintura da nigeriana Njideka Akunyili Crosby
Pintura da nigeriana Njideka Akunyili Crosby
 ??  ?? À direita, detalhe da videoinsta­lação Doppelgäng­er (2019), de Stan Douglas; na página ao lado, pintura do norte-americano Henry Taylor
À direita, detalhe da videoinsta­lação Doppelgäng­er (2019), de Stan Douglas; na página ao lado, pintura do norte-americano Henry Taylor
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ?? Acima, Untitled (2009), instalação da indiana Shilpa Gupta; na pagina ao lado, Can’t Help Myself (2016), instalação robótica dos chineses Sun Yuan e Peng Yu
Acima, Untitled (2009), instalação da indiana Shilpa Gupta; na pagina ao lado, Can’t Help Myself (2016), instalação robótica dos chineses Sun Yuan e Peng Yu
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil