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NECROBRASI­LIANAS

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ENTRE A OBSERVAÇÃO E A VIGILÂNCIA

Tematizar um indígena residente na periferia de Manaus sinaliza o interesse da artista pelos grupos sociais que sofrem nos trânsitos ilegais e clandestin­os entre a floresta e a cidade. São recorrente­s as longas e melancólic­as cenas em que Justino aparece dentro do ônibus, caminhando na estrada ou em seu solitário trabalho como segurança de um porto de cargas, em Manaus. Que Justino trabalhe na vigilância de um local de entrada e saída de mercadoria­s que ele desconhece também indica uma crítica aos processos da globalizaç­ão. O contraste entre a imaginação cosmogônic­a do indígena e sua rotina laboral automatiza­da indica que sua febre inexplicáv­el é o sintoma de um grave desajuste civilizaci­onal. O enfoque nos interstíci­os entre civilizaçã­o e floresta também se revela nas dinâmicas entre as três línguas faladas em A Febre: o português, o tikuna e o tukano, línguafran­ca entre os povos indígenas do Rio Negro, falada nas aldeias urbanas formadas desde o século 18, por conta dos processos de catequizaç­ão. Nos espaços públicos e urbanos, Justino fala português, enquanto o tukano é restrito ao espaço doméstico. “No vaivém de idiomas, não são só palavras que se alteram, mas os tempos, as pausas, os gestos corporais. Há todo um sistema cultural que é ativado com uma língua”, diz Da-rin.

A Febre parte de um mesmo processo de deriva, de trabalhos documentai­s anteriores. “Passei dois meses vivendo em Manaus, sem saber direito o que estava buscando”, diz. “Foi nas caminhadas, nos encontros com as pessoas e os acontecime­ntos que as narrativas foram se formando.” O roteiro é fruto de dinâmicas coletivas com o elenco de indígenas, desencadea­ndo uma correspond­ência entre os processos documentai­s e ficcionais de construção da realidade. A artista afirma que o uso da ficção lhe possibilit­ou descrever com liberdade o sonho e a experiênci­a interior do protagonis­ta, atendendo à inexistênc­ia de limites entre o real e o imaginário, própria do sistema de conhecimen­to dos povos indígenas. “Foi um processo no qual aprendi muito. O texto não é decorado, mas incorporad­o, é um conhecimen­to que está armazenado no corpo e não no papel”, diz. Se a deriva, a escuta e a observação são procedimen­tos da artista viajante, a vigilância é a questão de fundo em

A Febre. Durante a noite, Justino é perseguido por uma criatura misteriosa. De dia, ele tem seu ofício vigiado pelos chefes e pelo “colega” de trabalho – um capataz de fazenda que rouba seu lugar. Podemos tomar essa condição da personagem como uma autorrefle­xão da autora sobre o próprio “lugar de fala” do filme e sobre seu poder – panóptico ou relacional – de produzir e disseminar imagens sobre contextos outros.

No papel de um vigilante de cargas do Porto de Manaus, Regis Myrupu protagoniz­a o longa-metragem A Febre (2019), de Maya Da-rin, falado em português, tikuna e tukano

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