NATIVA E ALIENÍGENA
Anna Bella Geiger desmonta lógica binária entre periferia e centro
ASSUMIR O PAPEL DO HISTORIADOR
Para esses artistas, as imagens feitas pelos viajantes em tempos da colônia e do império no Brasil devem ser assumidas como registros indiciais da violência absoluta que colonizadores europeus (e seus associados e continuadores locais) perpetraram contra povos indígenas e a população negra escravizada. Em termos benjaminianos, esses artistas exibem, em seus trabalhos, aquilo que a brasiliana de fato é: um conjunto de documentos da cultura e, de modo simultâneo e inseparável, da barbárie inaugurada com o empreendimento colonial. Escrever a história no “sentido contrário” ou “a contrapelo”, como demandava o filósofo alemão, traduz-se, no presente contexto, na decolonização da brasiliana feita por esses criadores; no despegar-se de interpretações dessas imagens que não acolhiam a gravidade extrema de tudo a que elas se referem. É tarefa que requer considerar a brasiliana de novo, mas a partir do ponto de vista daqueles que aparecem nela como os vencidos, desafiando sua inscrição abrandada no cânone da história da arte. Tarefa que demanda expor os modos como essas cenas traem, para além do que seus criadores eventualmente desejaram mostrar, o cancelamento de possibilidades de vida antes disponíveis aos derrotados e as consequências duradouras dessa supressão violenta imposta pelos vencedores, pois “os que num dado momento dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes”. Projeto que vai além, todavia, da constatação de danos materiais e psíquicos impostos a tantos por tempo tão largo, afirmando também a incontornável responsabilidade de retomar e
O Arco e Flecha Reescritura sob Perspect - Ativismo (2020), rasura a nanquim sobre ilustração do livro Grandes Expedições à Amazônia Brasileira refazer, em outros termos, aquelas possibilidades negadas pelo que se entende por “progresso”. Ao assumirem, para si, o papel que Walter Benjamim atribuía ao historiador, esses artistas não se propõem, portanto, a meramente descrever o passado tal como ele teria supostamente ocorrido, prestando-se, sobretudo, a “fazer emergir as esperanças não realizadas desse passado, [a] inscrever em nosso presente seu apelo por um futuro diferente”, segundo Jeanne Marie Gagnebin em Walter Benjamin: Os Cacos da História. Apelo pela realização daquilo “que podia ter sido e que não foi”, como uma vez sintetizou, em outro contexto, o poeta Manuel Bandeira.
É impossível saber, todavia, quão bem-sucedidas podem vir a ser essas estratégias de defender os mortos e animar os vivos. Não existem, afinal, quaisquer garantias de que aquilo que a arte oferece seja subjetivado politicamente e influencie, de algum modo relevante, os movimentos de uma comunidade em um indeterminado futuro. São, em todo caso, gestos e narrativas que, em um momento de tão intensas disputas simbólicas como têm sido as primeiras décadas do século 21, se somam a outros movimentos e construções em uma rede de resistências para lembrar, a qualquer um, as maneiras como aquelas violências passadas estão articuladas com violências presentes e nestas se transmutam. Para lembrar que existe uma violência colonial contemporânea, a qual deve ser confrontada sem subterfúgios por quem a ela se opõe, valendo-se, para isso, dos instrumentos que cada um dispõe para fazer uso. ESTE TEXTO É EXTRATO DE ENSAIO INÉDITO DO AUTOR, DEFENDER OS MORTOS, ANIMAR OS VIVOS. AS QUESTÕES NELE APRESENTADAS SERÃO OBJETO DA EXPOSIÇÃO NECROBRASILIANA, A SER REALIZADA NA FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO, NO INÍCIO DE 2021, COM CURADORIA DE MOACIR DOS ANJOS.