AURITHA TABAJARA
Cordelista indígena evoca saber ancestral em texto sobre futuro da floresta
ESPELHAMENTO E EMPATIA
Entre os pares de imagens, um chama particular atenção: de um lado, uma índia Suiá sorri, observando a própria imagem em um espelho. Do outro, Geiger se debruça na direção de um olho d’água no chão, na pose ocidental clássica do Narciso contemplando a própria imagem.
Nas imagens espelhadas das duas mulheres – uma com seu corpo e território ameaçados por invasões; a outra, com seus atos e gestos cerceados pela censura –, os reflexos de uma mesma opressão. Diluídas hierarquias nesses espelhamentos, nos perguntamos: quem aqui é o nativo? Quem o alienígena?
“Os cartões-postais do ‘Brasil Nativo’ me trouxeram a pergunta: onde está o Brasil alienígena? E o que ocorre nesses dois Brasis, no nativo e no alienígena? Foi isso o que me motivou a criar a relação: a nossa falta do voto, a nossa falta de cidadania”, diz Anna Bella Geiger à select.
Pelo seu caráter desestabilizador de forças, Brasil Nativo/ Brasil Alienígena é um trabalho fundacional na trajetória da artista. A obra nomeia a exposição que esteve em cartaz no Masp e no Sesc, em 2019, e que em 2021 segue para o Smak Antuerpia. Ela dá continuidade às pesquisas sobre a relatividade dos conceitos de centro e periferia – Aqui é o Centro (1973) – e abre caminhos para as fotogravuras de mapas – Mapas Elementares (1976); Local da Ação (1979-80) – que colocam a América do Sul no centro e o Rio de Janeiro no centro cultural do mundo. Deslocado para o contexto de 2020, o trabalho adquire centralidade em discussões atuais relativas a diversidade, decolonialidade, crise ambiental, fake news e negacionismo. A imagem da vida pretensamente imperturbada das aldeias amazônicas, reproduzida nas bancas de jornais de um país censurado, está para os tuítes do Brasil de Bolsonaro: a Floresta Amazônica não está queimando.
POR QUE NÃO SENTIR O AROMA?
Mas outro elemento perturbador vem embaralhar as certezas sobre quem é o nativo e quem é o alienígena nesta história. Ele se chama Anna Bella Waldman. “Imagine que meu sobrenome é Waldman – o homem da floresta”, diz a artista à select. “Quando me casei, em 1956, eu assinava Anna Bella Waldman, mas por essas coisas de hierarquias machistas, naquela época o nome de solteiro desaparecia e vinha o nome do marido... demorou para eu assimilar, mas comecei a assinar Geiger. Gosto do sobrenome Geiger, que significa violinista, mas não é a minha verdadeira face de uma Waldman, que é mais selvagem, que vem de dentro da floresta.”
A espiral das derivas, das oscilações e das flutuações na obra de Anna Bella Waldman Geiger se completa quando, em outubro de 2020, ela volta à série em processo Rrose Sélavy, Mesmo (1997-2020). “As inserções de Rrose Sélavy em páginas de jornal eu já faço há uns 20 anos, quando as manchetes me trazem frases que podem ter duplo sentido”, diz. Colada sobre a fotografia de um indígena e sob a chamada “Febre da selva”, no segundo caderno do jornal O Globo, o alter ego queer de Duchamp e as “quase manchas” dos “quase mapas” de projetos anteriores são convocados para de novo provocar e desestabilizar nossas certezas sobre quem está no centro e quem está na margem.