FLUXO CONTÍNUO
A CORDELISTA AURITHA TABAJARA DIZ ESCREVER COM AS VOZES DA TERRA, DA ÁGUA, DO VENTO, DA CHUVA E DOS ANIMAIS
Artistas e educadores da Amazônia participam de corrente de perguntas e respostas
Nesse período, todos os dias, ela ia transformando o conteúdo das disciplinas a que assistia em literatura de cordel. O resultado do processo está no livro Magistério Indígena em Verso e Prosa, que foi publicado em 2007 e adotado pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará como obra obrigatória nas escolas públicas.
Mas a paixão por contar histórias, de acordo com a escritora, vem de muito antes, quando ainda estava na barriga da mãe. A afirmação é justificada pelo fato de sua avó ser parteira e uma das maiores contadoras de histórias do povo Tabajara. Foi ela, inclusive, quem escolheu o nome ancestral Auritha para chamar a neta, batizada oficialmente como Francisca Aurilene Gomes. E não só: por ouvir da matriarca a constatação de que “tudo passa”, a autora cresceu com a ideia de que, para que as outras gerações conheçam sua história, não é suficiente apenas escrever, mas necessário também publicar. Talvez por isso, desde que lançou seu primeiro livro, não tenha parado mais. Além dos folhetos Toda Luta e História do Povo Tabajara (2008), Diário de Auritha (2009), A Sagrada Pedra Encantada (2019) e A Grandeza Tabajara (2019), ela está para publicar o livro A Lenda do Jurerê, escrito em 2020, e conta com uma série de textos em antologias indígenas, como nas revistas Maria Firmino dos Reis e Acrobata.
Concluir Corações na Aldeia, Pés no Mundo, seu segundo livro, que lhe rendeu o título de primeira escritora cordelista indígena, Auritha relembra, não foi nada simples. “Cordel é simples de ler e entender, mas não é nada fácil para escrever”, diz. “As pessoas não acreditavam que poderia fazer sucesso.” O lançamento só aconteceu com o incentivo de Daniel Munduruku, da Editora UKA, que sugeriu imprimir uma tiragem de mil exemplares como teste, para entender a aceitação do livro, que hoje está esgotado e ainda sem previsão para uma segunda edição.
Adaptar-se a São Paulo, cidade onde passou a viver em 2009, também foi uma tarefa árdua. O ritmo acelerado da cidade bloqueava a escrita da cordelista, que estava acostumada a produzir sentada na areia ou na raiz de uma árvore. A dificuldade de encontrar trabalhos formais, ainda, marcaram os 11 anos em que viveu na metrópole, onde por muito tempo foi cuidadora de idosos movida pelo desejo de ouvir histórias diferentes das que aprendeu em sua aldeia.
Auritha costuma dizer que a mulher indígena escreve com várias vozes: da terra, da natureza, da água, dos pássaros, do vento, da chuva, dos animais. As vozes ancestrais que, durante a pandemia, momento em que precisou retornar à sua aldeia – a 370 quilômetros da capital cearense –, se tornaram ainda mais próximas.
Peço aqui, mãe natureza Que nos dê sua licença, Em palavras transformar Os versos de tua essência, Neste momento urgente A floresta grita e sente O ardor da violência.
O Brasil é um país De patrimônio ambiental, Se queimam toda floresta É a riqueza nacional, Crescendo o desmatamento, Visando o faturamento, Nosso ar ficando mal.
O futuro será incerto, Desta nova geração nossos filhos, nossos netos Sem terra sem proteção, Sem plantas medicinais Os povos tradicionais, E toda população.
Se ainda existe floresta, Porque somos resistência, Não estamos separados No sagrado, na ciência Riqueza é respirar bem Pense aí você também Bonito é ter consciência.
Nosso berço de origem Nossa casa ancestral, Nossa verdadeira mãe, De uma força universal, É nosso bem planetário, Ninguém é proprietário É Morada espiritual.
Não apenas os que vivem nela, Pra toda sociedade A floresta representa O princípio da humanidade Dádiva do Criador O lugar dela é onde estou Para o mundo, necessidade.
Auritha Tabajara
Sítio Boa Esperança 29/11/2020 Ipueiras Ceará
NESTA EDIÇÃO QUE DISCUTE A AMAZÔNIA A PARTIR DE SUAS FRONTEIRAS, QUESTIONANDO AS NOÇÕES DE CENTRO E PERIFERIA, OPTAMOS POR LANÇAR UMA DINÂMICA DE ENTREVISTA COLETIVA, ABORDANDO A FLORESTA POR MEIO DA PLURALIDADE DE QUEM A VIVENCIA E PEDINDO PARA QUE OS PARTICIPANTES ESCOLHESSEM A QUEM GOSTARIAM DE FAZER A PRÓXIMA PERGUNTA.
Para iniciar a corrente, convidamos o fotógrafo paulista Miguel Chikaoka, que fincou raízes em Belém, em 1980, e ali idealizou a Associação Fotoativa, a Agência Kamara Kó Fotografias e promoveu uma série de processos educativos. A partir de Chikaoka, a conversa seguiu adiante com Marcela Bonfim, que se mudou de São Paulo para Porto Velho (RO), onde passou a retratar a presença negra na Amazônia; Jaycelene Brasil, socióloga acriana que se dedica às questões de raça, gênero e classe e atua desde 2015 como professora; Camila Cabeça, produtora nascida em Belém, pesquisadora das culturas populares, com um projeto voltado para a educação patrimonial e uma das embaixadoras do Projeto Juntos pela Transformação, coordenado pela escritora Djamila Ribeiro; Priscila Duque, compositora, vocalista e
performer paraense, cofundadora do grupo Carimbó Cobra Venenosa; e Roberta Tavares, quilombola da comunidade de Cravo (PA), poeta e mestranda em História pela UFPA, onde pesquisa a escravidão e a presença negra nas regiões quilombolas do Rio Bujaru.
select: Como a visualidade amazônica vem sendo construída dentro e fora do território? Miguel Chikaoka:
Meu envolvimento direto e intenso nessa construção resulta numa teia de conexões que dificultam o distanciamento necessário para produzir uma leitura racional. É como estar no olho do furacão e querer saber sobre o seu tamanho e o caminho por onde ele segue. Minha visão resulta, portanto, de uma compilação de aspectos das leituras, com os quais concordo, produzidas por pesquisadores, curadores, pensadores e estudiosos, que abordam, com distanciamento e desenvoltura, os meandros desse processo. Em comum está a percepção de que a construção da visualidade amazônica se dá num cenário de dimensões continentais, diverso, complexo e marcado historicamente por projetos e processos de ocupação e exploração devastadores, seja no plano ambiental, seja no social e cultural. Muitos produtores culturais e artistas que atuam nesta cena tratam, de alguma forma, dessas tensões e como elas são vivenciadas no cotidiano. Isso se dá num movimento de reconhecimento, autoconhecimento e afirmação de identidades e, claro, de resistências permeadas por experiências que dialogam com a potência da sabedoria e do imaginário caboclo e ribeirinho, e da ancestralidade dos índios e negros, sem a qual não se pode pensar e trabalhar a Amazônia em toda a sua plenitude. Em certa medida, a visualidade amazônica desvela-se naquilo que emerge desse processo e pode ser percebida mais como um modo de sentir do que propriamente de demonstração racional.
Miguel Chikaoka: Que conexões surgiram no seu processo ao desvelar a Amazônia negra? Marcela Bonfim:
O próprio encontro com uma Amazônia da cor de minha pele foi essa conexão, que me permitiu acessar lugares que nunca imaginei, fazendo da vivência um alinhamento diário entre o corpo e a ideia. Daí a consciência de imagem, esse pertencimento visual que passou a ser parte de mim. Foi aqui, em Rondônia, que percebi um sentido de vida mais próximo das minhas reais condições de mulher negra; e foi aqui também que percebi a necessidade de buscar o que ainda não conheço. “Você é barbadiana?” Eu nunca havia sequer ouvido falar sobre um barbadiano. Mas, andando de bicicleta pelas ruas da cidade, passei a ouvir com frequência essa pergunta, levantando a curiosidade de saber que imagena seriam aquelas associadas à minha feição. Assim conheci essa presença negra fundamental a Porto Velho, que se trata de uma grande diáspora vinda de muitas partes do Caribe, não apenas de Barbados, cuja primeira geração colaborou na construção da Estrada de Ferro Madeira-mamoré, entre 1907 e 1912. Percebi daí graves lacunas em minha existência, uma série de faltas na própria identidade, tendo
como reflexo (subjetivo) o não pertencer a esse corpo, convivendo boa parte da minha história com a imagem da baixa autoestima. Sombras! Aos poucos, contornadas de encontros e reflexos dignificados com o Maranhão, com o Pará, com a Bahia, com o Ceará, com o Haiti, e tantos lugares que (re)conheço aqui, na tradução de potências e caminhos à flor da minha própria pele. A fotografia tem esse poder de conexão!
Marcela Bonfim: Como se lida com as tantas fronteiras identitárias presentes nesta Amazônia acriana cheia de presenças e invisibilidades? Jaycelene Brasil:
Nas confluências das várias histórias das nossas histórias acrianas nortistas amazônidas, ainda invisibilizadas para muitas pessoas que vivem do lado de “cá”, e também para quem vive do lado de “lá” do Brasil, é que se agiganta o desafio de estilhaçar a presença do senso comum e o silêncio sobre quem somos e como vivemos, verdadeiramente, em um território rico em pluralidades. Segundo o pesquisador e professor Jorge Fernandes, a historiografia acriana registrou a presença nordestina no Acre, mas a presença de pessoas negras ficou em condição incógnita, especialmente por não haver evidências oficiais de serviços escravos nesta região. Nesse sentido, considerando o peso da colonialidade durante o processo de ocupação territorial, é que precisamos exaltar amazonicamente um povo que tem identidade e cor (somos 73% da população no estado do Acre, somatório de quem se autodeclarou preto e/ou pardo durante o censo de 2010). É importante registrar aqui também a existência das 16 etnias indígenas no estado. Precisamos caminhar na direção do movimento da “afrobetização” com a finalidade de lidar com essa invisibilidade histórica, ao mesmo tempo temos de potencializar a luta antirracista nas diversas ambiências: nas escolas, em casa, no trabalho, nas universidades, nas pequenas rodas de conversa, criando territórios de negritude numa proposta de descolonizar o pensamento. Nossa ancestralidade afro-amazônida precisa ser pesquisada e exaltada positivamente para o mundo, porque, certamente, atravessará o tempo e será contada.
Jaycelene Brasil: Como desenvolver potências criativas em arte e educação patrimonial, considerando a diversidade amazônida? Camila Cabeça:
Para a melhor formação do público que se pretende, para ampliar a sensibilidade do seu resultado, é importante saber chegar não como os detentores da sabedoria e do conhecimento em um ambiente escolar ou de formação, mas como proponentes de soluções. Outra circunstância é trabalhar as formas da criação amazônica, sua natureza, sua composição identitária, suas histórias… sua patrimonialidade ampla e rica de referenciais afro e indígenas. Certa vez, quando dava aula no projeto Mais Educação, tive uma aluna que passava por um processo pesado de não aceitação de sua origem indígena, pois seu sobrenome Kaxinauá era usado por outros alunos para a prática do bullying. Para o processo de construção de estima e a troca da importância das coisas, eu a transformei em uma bailarina principal. Tudo mudou para melhor, a partir de então. Por isso que a arte no ambiente escolar é fundamental, pois, a partir do contato do aluno com as linguagens artísticas, ele começa a compreender que o caminho, mesmo com as rudezas da vida, passa a se tornar amplo de possibilidades. Precisamos, enquanto educadores, ter a noção de que estamos em concorrência desleal com o crime organizado, que coopta jovens potentes. E chegar primeiro, com os processos criativos de arte e patrimônio, para que ocorra a compreensão do seu espaço de território criativo, de que a sua história parte dali para a conquista do olhar, para ver o mundo repleto de transformações positivas e que, sobretudo, se sinta parte dele e isso faça a diferença na sua vida. Para que ocorram, enfim, o pertencimento e o empoderamento, que constituem o processo tão almejado para um desenvolvimento.
Camila Cabeça: Qual é a importância do carimbó no processo de construção do trabalho da representatividade feminina? Priscila Duque:
O carimbó é uma manifestação da cultura popular paraense. É um estilo de vida que nos apresenta uma noção de comunidade-território, poesia, identidade estética e rítmica. É um espaço onde se apresentam modos de ver o mundo. As mulheres estavam no carimbó majoritariamente com funções internas de auto-organização e como dançarinas. Nos últimos anos, começamos a reivindicar lugares simbólicos de poder, que são o curimbó (tambor característico do carimbó), o banjo (instrumento de corda), a voz puxando a roda. Começamos a exigir o reconhecimento como parte fundamental do processo. Frequentando rodas há quase 15 anos, o que sempre via era uma festa em que os homens iam tocar e as mulheres iam dançar. Cheguei a viver e a assistir a cenas de assédio e até de violência contra mulheres. Quando comecei a “brincar de tocar e cantar”, já notava que várias mulheres eram superimportantes nos bastidores e algumas até tocando, mas estavam sempre invisibilizadas ou sob a autoridade dos homens. Penso que o que fiz de diferente foi sistematicamente passar a questionar esse patriarcado. Meu protagonismo passou a reverberar e a incomodar os mais tradicionalistas. Mas também inspirou outras mulheres. A representatividade feminina no carimbó é fundamental porque somos sujeitas de nosso tempo. Assumir o lugar de mulher protagonista é uma maneira de transformar a nossa própria vida e tudo à nossa volta, não mais permitindo que violências físicas e simbólicas se perpetuem. A nossa voz e o nosso corpo são a nossa decisão, por isso podemos fazer tudo, inclusive sentar no tambor e cantar resistência no carimbó.
Priscila Duque: Como é ser uma artista e pensadora quilombola na Amazônia?
Roberta Tavares: É parecido com qualquer artista e pensadora de muitas partes do mundo, oriunda das classes populares, na medida em que me parece que ser artista não é garantia de ter facilmente a sustentação material de nossas próprias vidas, a partir do reconhecimento dos nossos trabalhos, neste mundo capitalista que preza pela insensibilidade e pela exploração. Ao mesmo tempo, tenho a peculiaridade de ser mulher negra e quilombola da e na Amazônia, que faz poesia e que constrói narrativas históricas a partir do protagonismo deste lugar. Isso parece simples, mas não é, se pensarmos que no imaginário social a região ora transita numa perspectiva de imagem deturpada de floresta inabitada, de vazio demográfico e sem presença negra, ora somente relacionada à ideia de “índios” estáticos, sem reconhecimento da existência real dos vários povos nativos que aqui estão. No mais, ser poeta e historiadora na Amazônia e da Amazônia é subverter a lógica racista que sempre nos colocou em lugar de objetos da pesquisa ou da arte. Como poeta e historiadora negra amazônica, eu carrego comigo a subversão de ser, fazer ecoar a nossa própria história, construída desde sempre por nós mesmos. Nossa arte e nossa narrativa, que são coletivas por pertencer ao povo ao qual pertencemos e que nos ensinou a ser gente que respeita o mato, que respeita os antepassados, que respeita a vida, e essa é uma sabedoria ancestral, de comunidades negras rurais, quilombolas, indígenas, e outras que fazem deste território sua casa há centenas de anos.
É comum, em inúmeras mitologias, a existência de deidades triádicas que se completam em uma tarefa contínua: a criação, a manutenção e a renovação do mundo. Em Vênus em Escorpião, novo trabalho de Gaby Amarantos, tal concepção naturalizada do ciclo da vida é encarnada pelo encontro entre três artistas de diferentes gerações: Ney Matogrosso, a cantora mineira Urias e a própria Amarantos, os quais, metamorfoseados em seres da floresta, representam essa função no videoclipe lançado em 27/11/20. A música é resultado também da parceria com os conterrâneos paraenses de Gaby Amarantos, os músicos Jaloo e Lucas Estrela, que transformam a batida do tecnobrega e seus riffs mesclados de guitarras alegres em um ritmo acelerado e raivoso. E com razão.
Saída do tecnobrega paraense e da mistura encantada da Floresta Amazônica, Gaby Amarantos implora aquilo que os astrólogos dizem significar a Vênus transitando pelo signo de Escorpião: transformação e justiça em um ano em que incêndios no Pantanal atingiram o inédito índice de 210% e as queimadas na Amazônia marcaram o maior registro de focos na história, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), responsável por monitorar tais índices e que no governo Bolsonaro vem sofrendo sucateamento. Não à toa, quando o hit foi lançado, Vênus, o planeta do amor e da riqueza, transitava pelo signo de Escorpião. Os gritos de mudança para o Brasil vêm de todos lados, principalmente do Norte e do coração da Floresta Amazônica.
A amplificação do grito de Gaby Amarantos ficou a cargo do diretor João Monteiro, da dupla Os Primos, responsável pela estética LGBTQIA+ de toda uma geração de músicos surgidos a partir dos anos 2010, como Pabllo Vitar, Glória Groove e a própria Urias, que teve o trabalho Diaba, seu primeiro single, dirigido por Monteiro. É comum ver nos vídeos desse diretor uma estética drag, queer e barroca que dialoga com a tradição do brega brasileiro, mas em Vênus em Escorpião a roda gira, assim como o tom matreiro de Amarantos gira para uma Amazônia futurista e distópica (ou atual?). O vetor estético do videoclipe e de toda imagética do trabalho é referendado por uma espécie, se assim se pode dizer, de afrofuturismo, que finalmente chega ao pop nacional de maneira enfática. Tal fenômeno estético vem se infiltrando nas mostras de cinema do país há um bom tempo. É crescente o trabalho de cineastas que usufruem desse movimento, como, por exemplo, o filme Kbela (2015), da carioca Yasmin Thayná, no qual a diretora faz um mergulho ancestral e de empoderamento das mulheres negras, e também o surgimento de curadorias totalmente dedicadas ao tema, como as da pesquisadora Kênia Freitas, que tem pinçado na produção audiovisual brasileira trabalhos alinhados que podem ser chamados de afrofuturistas.
Esse renascimento do movimento que, segundo Freitas, é ainda desconhecido do público brasileiro, foi fortificado pela onda de protestos antirracismo que tomou conta do mundo nos dois últimos anos e, obviamente, vem reverberando na produção artística do país. Kênia Freitas, pesquisadora do tema, quando realizou uma curadoria de produções audiovisuais afrofuturistas de diferentes lugares do mundo (incluindo o Brasil) para a Mostra de Cinema de São Paulo, em 2015, afirmou em entrevista ao site Cinefestivais que o fenômeno nascido nos Estados Unidos é “um movimento estético, político e crítico plural e multifacetado, tendo como ponto comum uma narrativa alternativa e fantástica para as experiências das populações negras no passado, no presente e no futuro. Nesse processo, as obras misturam e são influenciadas por elementos da ficção científica, do hiper-realismo, da fantasia, das diversas mitologias de origem africana”.
É também inegável que o videoclipe Vênus em Escorpião bebe na fonte de artistas norte-americanas, como Janelle Monae e Erikah Badu, que também levaram para a música pop o afrofuturismo atualizado. Seguindo a cartilha do afrofuturismo de Gaby Amarantos, há a floresta e sua miscigenação: Ney Matogrosso, ora um Exu espacial, ora um Zé Pilintra; Urias, uma Uiara futurista e também uma entidade de umbanda; e, por fim, Amarantos interpreta uma Mãe Terra intergaláctica e também um Curupira vanguardista. Todos eles tentando salvar o mundo de um holocausto, em que a metáfora da vida é tudo aquilo que há de mais rico no Brasil: suas florestas, a água, a terra e sua gente encantada.
Aqui, esse afrofuturismo à Brasil também deve algo à Tropicália e toda performática inovadora do grupo Secos & Molhados, que durante os anos 1970 arriscou-se à frente de vários artistas, que hoje bebem na fonte da androginia tribal da banda, e o vocal singular de Ney Matogrosso. Diferentemente da capa antológica do primeiro disco do grupo, em 1973, em que as cabeças eram servidas em uma mesa na sala de jantar, hoje Ney, Amarantos e Urias – outra tríade – têm suas cabeças servidas em embalagens industriais cheias de remédio, carne e glúten, de onde imploram amor para o mundo, sem o cinismo da sobrevivência que o período da ditadura pedia. Pois os tempos, infelizmente, pedem a urgência da Vênus em Escorpião como nunca antes na história.