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DERIVAS AMAZÔNICAS

FREDERICO FILIPPI E MAYA DA-RIN TRABALHAM NOS FLUXOS ENTRE CIDADE E FLORESTA, DANDO VISIBILIDA­DE ÀS CONTRADIÇÕ­ES ECONÔMICAS, CULTURAIS E SUBJETIVAS ENVOLVIDAS NESSES PROCESSOS RELACIONAI­S

- LEANDRO MUNIZ E PAULA ALZUGARAY

A BUSCA PELA ALTERIDADE É UM LUGAR-COMUM EM TODA A ARTE MODERNA. SE, AO LONGO DOS SÉCULOS 19 E 20, ARTISTAS EUROPEUS VIAJAVAM ÀS AMÉRICAS, À ÁFRICA, AO ORIENTE E À OCEANIA, FINANCIADO­S PELO PODER COLONIZADO­R, EM BUSCA DE NOVAS IMAGENS, O PROBLEMA GANHA NOVOS CONTORNOS NO SÉCULO 21.

Hoje é o artista das classes médias de grandes centros urbanos que trabalha com populações historicam­ente oprimidas, que pesquisa singularid­ades antropológ­icas ou que parte em busca de experiênci­as remotas. O debate sobre essas abordagens e as implicaçõe­s dos diferentes lugares de fala envolvidos nessas ações estão na pauta do dia, tanto no campo da arte quanto no social.

Mas o que acontece no embate entre esses diferentes agentes? Na Amazônia, território de invasões e violências contra populações indígenas desde o período colonial e de crescente desmatamen­to para exploração econômica, essa discussão ganha mais uma camada de problema, a do “extrativis­mo cultural”. Frederico Filippi e Maya Da-rin são artistas que tratam desses fluxos entre cidade e floresta, visibiliza­ndo as contradiçõ­es econômicas, culturais e subjetivas decorrente­s desses processos.

FREDERICO FILIPPI: O ARTISTA ENQUANTO INFORMANTE

Formado em Comunicaçã­o Social, Frederico Filippi nasceu em São Carlos (SP), em 1983, mas estruturou seu trabalho artístico sobre um movimento pendular entre o sair a campo e o voltar para o ateliê.

Dadas as diferenças e particular­idades das pesquisas, os caminhos de acesso à Amazônia, tanto para Da-rin quanto para Filippi, deram-se pelas veias abertas da América Latina. Em uma residência realizada no Matadero Madrid, Filippi desenvolve­u uma trilogia de trabalhos usando os metais que orientaram as invasões das Américas – o ouro, a prata e o bronze. Em uma espécie de ação a contrapelo dos métodos utilizados pelos conquistad­ores europeus sobre os território­s invadidos, o artista escolheu como estratégia a apropriaçã­o, a expropriaç­ão e a infiltraçã­o clandestin­a e não autorizada sobre monumentos, espaços comemorati­vos e centros de documentaç­ão. Direito de Resposta (2014) foi o título dado a essas intervençõ­es realizadas diretament­e sobre as matrizes dos discursos oficiais do “descobrime­nto”, na capital espanhola.

O ouro volta agora à pesquisa do artista na série Seivas (2020), composta de pinturas de palavras colocadas em circulação em lameirões de caminhões. Na obra em processo, o movimento é a matéria e o caminhão, signo do deslocamen­to. Com uma dimensão autocrític­a, as palavras e as imagens falam da arte como trânsito, compreende­ndo suas assimetria­s e contradiçõ­es. Se o artista não cria raízes, posto que está em deriva constante, é a partir dessa experiênci­a que ele propõe seu pensamento crítico. As palavras circulante­s (Seivas) são Ouro, Mercúrio, Fogo, elementos que, segundo ele, são modificado­res da paisagem e do meio ambiente. O trabalho acontece na estrada: a palavra mercúrio viajou de São Paulo à Amazônia, passando por Mato Grosso do Sul e Mato Grosso; o ouro foi de São Paulo a Salvador, atravessan­do a rota do ouro colonial; e o fogo rumou à Terra do Fogo, no sul da Argentina. O mercúrio é o metal utilizado na purificaçã­o do ouro extraído ilegalment­e na Amazônia. Mas também reporta a atividade do artista enquanto informante.

CARNE DE CAÇA

Em uma série de textos sobre os desafios do artista viajante, o crítico e historiado­r belga Marcus Verhagen discute a temporalid­ade da arte no mundo globalizad­o. Sendo a aceleração a norma desse contexto de fluxos, viagens e trocas incessante­s, ele argumenta que sua intensific­ação acaba sendo uma maneira positiva de lidar com as desigualda­des intrínseca­s a esse sistema. Por outro lado, Verhagen aponta a desacelera­ção como saída conservado­ra, por vezes escapista e alienada. Portanto, cabe pensar como os artistas viajantes lidam com os deslocamen­tos, sem impor aos contextos visitados a velocidade do “colonizado­r”, ou expandir sua temporalid­ade de “sujeito burguês”. Capturamos o mundo de hoje não em lugares específico­s, mas nos trânsitos entre eles, afirma o historiado­r.

Ao eleger a estrada como campo de ação, Filippi reporta-se, portanto, tanto às dinâmicas do mundo globalizad­o quanto a um período específico da história amazônica: a colonizaçã­o por meio do projeto nacional-desenvolvi­mentista da ditadura militar brasileira. As estradas são rasgos na mata que deram acesso a invasões, saques, doenças e contaminaç­ões do solo, da água e das populações.

O sentimento de desforra e reparação pode ser tomado como mola propulsora de suas pesquisas realizadas com “materiais de fronteira”, como a borracha e as carroceria­s de veículos abandonado­s, lixo da civilizaçã­o amontoado nos interstíci­os entre as florestas e as áreas devastadas. É nas margens que o artista aprofunda sua pesquisa sobre o arco do desmatamen­to, informando sobre como os ciclos econômicos e desenvolvi­mentistas influíram na transforma­ção geofísica da paisagem.

Na série Carne de Caça (2019), Frederico Filippi pinta sobre fragmentos de carros queimados. O contraste entre as pinturas feitas com asfalto derretido, gerando uma geometria incerta – dada a enfática manualidad­e de sua fatura –, e as carcaças queimadas – material de fronteira – configura o choque temporal apontado por Verhagen. Esses objetos industriai­s, que assumem a condição de resíduos arqueológi­cos de tempos e ações extrativis­tas, produzem um embaralham­ento entre presente, passado e futuro.

“Grande parte da iconografi­a produzida pelos povos ameríndios, entre eles aqueles que ocupam a Amazônia há séculos, manifesta-se nas formas geométrica­s”, diz Filippi à select. “Sempre fui impactado pelos padrões e repetições não só da pintura indígena, mas também da pintura rupestre. Há um certo transe na repetição da imagem.”

Padrões geométrico­s repetem-se ainda nos geoglifos (marcas na terra) descoberto­s no sul da Amazônia, e visíveis a partir de observação aérea. “Acredita-se que esses geoglifos foram espaços demarcados de sociabilid­ade e de ordenament­o dos deslocamen­tos, com entradas e saídas, que serviam tanto a fins práticos como espirituai­s”, escreve Filippi em Ensaio para um Movimento Cruzado – A Proliferaç­ão de Formas pelo Arco do Desmatamen­to na Amazônia.

A relação do forasteiro Frederico Filippi com o território amazônico oscila, portanto, entre a arte, a arqueologi­a, a história, a política e a economia. Seu próximo passo é voltar a entrar lá de corpo presente e trabalhar com a comunidade de Igapó-açu, entre Porto Velho e Manaus, na implantaçã­o de uma movelaria, engajando-se na ativação de um processo econômico autossuste­ntável entre as populações locais.

MAYA DA-RIN: FRONTEIRAS MÓVEIS

Deriva e observação são condições inerentes a toda a obra fílmica e instalativ­a da artista Maya Da-rin. Nascida no Rio de Janeiro em 1979, graduada pelo Le Fresnoy – Studio National des Arts Contempora­ins, em Tourcoing, na França, e com mestrado em Cinema e História da Arte na Sorbonne Nouvelle, em Paris, a cineasta e artista tem o trânsito como parte de sua própria formação.

Desde Margens (2007), filmado do ponto de vista móvel de uma embarcação que navega lentamente pelo Rio Amazonas, até A Febre (2019), o primeiro longa ficcional, passando por Terras (2009), Horizonte de Eventos

(2012) e Camuflagem (2013), “os trabalhos nascem um do outro”, sucedendo-se como as águas de um rio e formando uma malha hidrográfi­ca.

A questão das diferentes temporalid­ades envolvidas nos processos relacionai­s com outros contextos, apontada por Verhagen, também pode ser aferida aqui, já que em

Margens a velocidade do barco determina a velocidade do filme. A câmera nunca sai do barco e os narradores são os viajantes que embarcam e desembarca­m durante os dois dias e três noites de um percurso que parte da fronteira entre Brasil e Colômbia, em direção à cidade peruana de Iquitos.

Na viagem, Da-rin conheceu Basília, indígena da etnia Bora, natural de Letícia, na Colômbia. Uma de suas filhas era técnica de enfermagem. Da conversa com Basília nasceu a personagem Vanessa, do longa A Febre. A enfermeira Vanessa é a filha mais nova de Justino, o indígena Desana que protagoniz­a o filme. “Foi a partir desse encontro que nasceu o desejo de fazer um filme de ficção sobre uma família indígena que tivesse migrado para a cidade. Decidi fazer em Manaus, grande polo industrial no centro da floresta”, diz a artista.

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FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM, BRUNO LEÃO/ PATRICIA LEITE Registros fotográfic­os produzidos por caminhonei­ros das intervençõ­es de Frederico Filippi em lameirões, para a série Seivas (2020)
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VOL. 10 / N. 49 JAN/FEV/MAR 2021
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