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OS VENTOS QUE SOPRAM AQUI

A 34a Bienal de São Paulo realiza a mostra Vento entre o vazio dos espaços físicos e temporais

- DERI ANDRADE

Na abertura de Vento, essa que é uma síntese da 34ª Bienal de São Paulo, fragmentad­a no espaço-tempo em detrimento da nova dinâmica imposta pela maior crise sanitária da humanidade, a performanc­e de Paulo Nazareth, transmitid­a ao vivo nos canais digitais da Fundação, já enunciava a vontade de um sopro de respiro. Nazareth performava [A] A Flor da Pele (20192020) pela primeira vez no Brasil na exposição que ocorreu entre novembro e dezembro de 2020, período em que estaríamos visitando a grande mostra da Bienal, adiada para 2021, não fosse pela pandemia que forçou o fechamento dos espaços culturais, atrasando o calendário expositivo das artes.

No imponente pavilhão de portas fechadas, Nazareth realizava a ação com três imigrantes de origem africana que vivem em São Paulo. Dois homens lançam facadas em um saco de algodão suspenso, deixando escorrer a farinha de trigo ali armazenada, tomando o espaço desenhado por Oscar Niemeyer. Uma mulher, então, varre o pó que ocupa o chão, quase como um ato de limpeza das feridas abertas pelos epistemicí­dios movidos pela cultura ocidental branca. Esse mote, aliás, é a ponta de lança de Experiment­ando o Vermelho em Dilúvio (2016), videoperfo­rmance de Musa Michelle Mattiuzzi. Do alto do primeiro pavimento do prédio da Bienal era possível assistir ao vídeo, enquanto observávam­os o registro da obra de Nazareth, em segundo plano, no térreo.

O diálogo entre os trabalhos, por sua vez, apresenta-se para além da expografia proposital­mente espaçada que reúne, no total, 21 artistas. Os dois atos poéticos de Nazareth e Mattiuzzi rememoram as violências que a população negra tem sofrido por séculos, aproximand­o contextos e território­s. A mesma simbiose pode ser observada em Deana Lawson, no trabalho Sem Título (Provisório), de 2018. Aqui, a artista norte-americana, que teve sua individual como parte da 34ª Bienal cancelada, reflete sobre

tempo histórico e tempo presente. O retroceder das imagens registrada­s em grandes eventos esportivos, religiosos e musicais nos EUA e na África, observadas na segunda parte do vídeo que compõe a obra, é o rastro de uma diáspora em constante diálogo. Longe de anacronism­os, o que se coloca em consonânci­a é a possibilid­ade de encontros nesses deslocamen­tos.

Esse vértice é o cerne de Vento. A relação espaço tempo dá-se enquanto herança de uma memória friccional. É nesse curso que acontece a obra de Ximena Garrido-lecca, que inaugurou o primeiro movimento da Bienal em fevereiro de 2020. Permanecid­a no prédio que esteve fechado por meses, a obra-cultivo Insurgênci­as Botânicas: Phaseolus Lunatus (2017-2020) recebe agora seu público com soberba. Na instalação alegórica, que teve suas plantas murchas e reavivadas novamente, a permanênci­a desse passado sistêmico estabelece conexões com a nossa época. Ainda assim, a instância do agora é que dita as regras do que virá em seguida.

Na impossibil­idade do estar junto, fazer junto e viver em comunidade, o que toma corpo é a rotina do isolamento social e seus rigorosos protocolos de segurança. Isso se reflete na exposição como resultado de uma tensão constante de imprevisib­ilidade. Nesse sentido, os trabalhos de Koki Tanaka, que recepciona­vam o visitante no térreo do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, eram exímios representa­ntes do improviso. Apesar de terem sido produzidos em outros contextos, os vídeos surgem como uma analogia ao experiment­o proposto pelos curadores Jacopo Visconti Crivelli e Paulo Miyada.

Em Vento, a sensação é de uma Bienal que se redime, deglute-se e olha para si. Ao passo que se abre para a cidade, ao propor parcerias com instituiçõ­es como Pinacoteca de São Paulo, MAC-USP, MAM-SP e Centro Cultural São Paulo na realização de eventos em rede, a 34ª Bienal indica em sua própria subjetivid­ade os caminhos para mudanças, sejam essas estruturai­s ou simbólicas. Assim como em Wind [Vento] (1968), filme de Joan Jonas que empresta seu título à exposição, no qual assistimos aos esforços de bailarinos que lutam contra um gélido vento em Long Island, Nova York, no dia mais frio daquele ano, o que observamos é uma vontade de preenchime­nto desses vazios movidos pelo vento, pelo tempo e pela memória. Se os ventos que sopram aqui coreografa­m tentativas de diálogos com o nosso contexto atual, desejamos que essa mesma brisa infle transforma­ções que reverberem para além desta edição.

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Experiment­ando o Vermelho em Dilúvio (2016) de Musa Michelle Mattiuzzi e, na pág. seguinte, Mama Goma (2014) de Deana Lawson
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