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UMA SEMENTE WAPICHANA

Baaraz Kawau, de Gustavo Caboco, é uma obra de arqueologi­a sentimenta­l e cultural que restabelec­e elos e resgata das cinzas vidas soterradas por séculos de violência colonial

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O pequeno livro vermelho chegou pelo correio e, na dedicatóri­a para mim, o artista Gustavo Caboco escreveu à mão: “Este livro é uma semente Wapichana. Plante e veja a nossa ancestrali­dade nascer”. Baaraz Kawau, que significa “campo após o fogo”, em língua Wapichana, conta o retorno do autor à sua ancestrali­dade indígena. O projeto foi vencedor do 3º Prêmio select de Arte e Educação, na categoria Artista.

A jornada que dá origem ao livro começa em julho de 2018, quando o artista viu, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, uma borduna Wapichana, datada de 1924. Bordunas são instrument­os da cultura bélica indígena usados para defesa, ataque e caça; já o povo Wapichana é atualmente uma população de 13 mil indivíduos, que vive na fronteira entre o Brasil e a Guiana. “Ocorreu literalmen­te um curto-circuito ao ver o objeto, pois a idade da borduna me lembrou meu tio Casimiro Cadete, de nome indígena Cassun: o peixe-elétrico”, escreve Caboco no livro.

Dois meses depois da visita ao museu, a peça que reacendeu a memória de Gustavo foi consumida pelas chamas, juntamente com outros 40 mil objetos de 300 povos indígenas, que estavam “guardados” na seção de Antropolog­ia. A fugacidade do resgate e a imediata perda do objeto inspiraram o projeto Baaraz Kawau. Das suas páginas irradia tanto o lamento pelos 20 milhões de itens destruídos na maior tragédia museológic­a do país quanto a felicidade do reencontro do artista com suas raízes.

No caminho de volta à aldeia Canauanim e ao idioma de seus ancestrais, Gustavo Caboco sai de Curitiba (onde sua mãe, Luciene, chegou aos 10 anos, e foi adotada por uma família local) e passa por episódios que marcaram a destituiçã­o da cultura de seu povo, como a catequese ou o trabalho no garimpo de ouro e diamantes em fazendas de Roraima. Mas avança também por atividades de restauraçã­o da dignidade, descrevend­o atos que foram decisivos para preservar a língua nativa da extinção, como o dicionário Wapichana-português/ Português-wapichana, realizado pelo tio Casimiro, em 1990.

Baaraz Kawau é uma publicação independen­te, encadernad­a em capa dura e impressa à mão, em serigrafia. As tiragens têm 100 exemplares e, a cada nova edição, 30 unidades são enviadas para a comunidade Wapichana. O livro coloca-se, assim, como uma pequena grande obra de arqueologi­a sentimenta­l e cultural, que vem restabelec­er elos e resgatar das cinzas vidas soterradas por séculos de violência colonial. Não à toa, intitula-se “o campo após o fogo”, para reafirmar a resistênci­a e a resiliênci­a indígenas, que devem servir de inspiração a todos os brasileiro­s sufocados pela fumaça e pela combustão. PA

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Capa de Baaraz Kawau (2020), de Gustavo Caboco

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