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JANAINA WAGNER: A CURUPIRA NA ESTRADA FANTASMA

Em produção, filme de ficção da artista paulistana conecta mitologia, literatura e cinema para alertar sobre o desmatamen­to na Amazônia

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EM SEU PROJETO DE DOUTORADO, EM CURSO PELO LE FRESNOY E PELA UNIVERSIDA­DE DE LILLE, NA FRANÇA, JANAINA WAGNER DESENVOLVE UMA PESQUISA PRÁTICO-TEÓRICA SOBRE A FIGURA DA CURUPIRA.

Wagner já vinha pesquisand­o elementos do imaginário que atuam na realidade material – a lenda do Lobisomem relacionad­a à mineração, por exemplo. No caminho encontrou a Curupira, que originou a pesquisa que envolve a reelaboraç­ão do imaginário sobre a Amazônia e o interesse global sobre esse território. “Não é um lugar que eu tenha algum tipo de relação de base, mas as tensões que isso produz dizem respeito ao presente global, e a ficção permite que eu, como branca, trabalhe na Amazônia e trace novas linhas de fuga”, diz Wagner à select.

O objetivo é produzir um curta-metragem que misture citações a Graciliano Ramos, Jorge Bodanzky, José de Alencar, referência­s às mitologias grega e indígena, em um procedimen­to de colagem. A atualizaçã­o dessas personagen­s para o presente indica o entrelaçam­ento cíclico entre progresso e extrativis­mo, entre outras questões reiteradam­ente repetidas e não elaboradas no contexto sociopolít­ico brasileiro no que diz respeito à Amazônia.

TRAZER A CURUPIRA PARA A REALIDADE

Jornalista de formação, Wagner usa a apropriaçã­o e a associação de elementos já dados na cultura como estratégia de reflexão crítica sobre a realidade. E Realidade, inclusive, é o nome de uma das vilas onde o filme será gravado. Com ruas de terra, baixa infraestru­tura e altos índices de extração madeireira, Realidade é localizada entre Porto Velho e Manaus, na BR-319, que liga o Norte ao Sul do país e é conhecida como Estrada Fantasma.

Essa estrada – uma cicatriz na floresta – sofreu ataques de comerciant­es na época de sua construção, nos anos 1970, por acabar com o transporte fluvial, tendo todo seu asfalto destruído, o que dificulta o trânsito da população local. Se o asfalto é o sonho daquela comunidade por possibilit­ar o deslocamen­to, também é a facilitaçã­o do escoamento de madeira, fruto do desmatamen­to ilegal. A crença no “progresso” vindo do extrativis­mo também faz com que aquela comunidade se veja representa­da nos discursos políticos da extrema-direita, em uma complexa relação de interesses. Outra localidade onde o filme é realizado é São Gabriel da Cachoeira, última cidade do Rio Negro, ponto de convergênc­ia de 23 etnias indígenas. Nessa comunidade não há limites entre a mitologia da Curupira e seus efeitos na realidade. “Há uma certa exotização dos franceses em relação ao meu projeto. Eles têm esse imaginário da Amazônia como uma grande floresta maravilhos­a. De fato, é um lugar idílico, mas com muita violência. São Gabriel é uma cidade onde o capitalism­o entrou sem barreiras, com violência, abandono, alcoolismo e consumo desenfread­o. É o lugar com o maior índice de suicídios indígenas”, problemati­za a artista.

PROGRESSO AO INVERSO

Curupira é uma palavra tupi e alguns a compreende­m como mãe da mata. Outros nomes possíveis são Namu e Caapora. Ninguém vê a Curupira; quem a vê desaparece. Só é possível escutar os seus indícios. Caçadores costumam colocar tabaco e cachaça na entrada da floresta, como oferenda para se proteger de seus ataques. Tem o cabelo de fogo e os pés para trás e, se sua representa­ção foi infantiliz­ada e adocicada pela cultura de massa, na cosmogonia das populações locais ela é a força que protege a floresta. Os pés para trás serão usados no projeto de Janaina Wagner, intitulado Curupira e a Máquina do Destino, como uma metáfora crítica das “evoluções” do mundo moderno e das ideias do progresso. Já o cabelo de fogo abre muitas possibilid­ades de interpreta­ção: de uma chama interior ao controle do homem sobre a natureza. “Minha ideia é fazer um mito de Prometeu ao contrário. Quando pega o fogo dos deuses, ele começa a civilizaçã­o. Vou abrir o filme com uma imagem de Cubatão filmada com drone, o fogo saindo por uma chaminé de uma das cidades mais poluídas do país.” O projeto usa novas tecnologia­s para reencenar personagen­s do passado. Algumas imagens desenhadas são uma manada de bois fantasmas na BR-319, um encontro entre a Curupira e o espectro da Iracema do filme de Bodanzky (um avatar criado em 3D) e um céu sempre vermelho, irradiando as queimadas e o pôr do sol eternos. O encerramen­to do filme propõe uma profecia para o futuro. As filmagens acontecem a partir de janeiro de 2021, ao longo de cinco semanas. Os deslocamen­tos de Janaina Wagner para a Amazônia recolocam a discussão sobre os artistas viajantes e de fronteiras, as assimetria­s e os pontos de contato decorrente­s desses processos. Os desmatamen­tos da Amazônia, no entanto, dizem respeito ao desequilíb­rio climático causado pelo aqueciment­o global. A forma encontrada pela artista de repor a universali­dade da questão é pelo imaginário: mitologias e ficções possibilit­am conectar o próximo e o distante, o conhecido e aquilo que ainda não foi mapeado. LM

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Nesta página e nas próximas, frames da obra em processo de realização Curupira e a Máquina do Destino
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VOL. 10 / N. 49 JAN/FEV/MAR 2021 FOTO: BERLIN BIENNALE FOR CONTEMPORA­RY ART
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