ANNA BELLA GEIGER O NATIVO, O ALIENÍGENA E O DESLOCAMENTO DA PERIFERIA PARA O CENTRO
A diluição de binarismos na obra fundamental de Anna Bella Geiger
O DESMONTE DA LÓGICA BINÁRIA É UMA DAS GRANDES CONTRIBUIÇÕES DAS TEORIAS QUEER E PÓS-FEMINISTAS ÀS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E COMPORTAMENTAIS EM CURSO HOJE, COLOCANDO EM MODO DEMOLIÇÃO REGRAS NORMATIVAS QUE POR SÉCULOS SUSTENTARAM A COLONIZAÇÃO DOS CORPOS.
Essas mesmas forças de desestabilização das lógicas de poder sobre corpos e territórios entraram em campo nos estudos de Anna Bella Geiger sobre o centro e as polaridades. Brasil Nativo/ Brasil Alienígena (1976-77) é um ponto de inflexão desse processo, quando toda a classe de binarismos, como a parte e o todo, o dentro e o fora, e eu e o outro, começa a se desequilibrar e se embaralhar.
O trabalho é feito de nove pares de imagens, mas nem por isso fala de extremidades, ou de opostos complementares. De um lado, uma coleção de cartões-postais comprados pela artista em uma banca de jornal mostra cenas cotidianas e rituais de indígenas de diversas etnias – Bororo, de Mato Grosso; Suiá e Trumai, do Alto Xingu; Uaika, do Alto Rio Negro.
No verso, lê-se “Brasil Nativo”. Do outro lado, temos as reencenações dos mesmos atos indígenas, realizadas pela artista, filhos e amigos, no contexto da cidade do Rio de Janeiro. No verso, lê-se “Brasil Alienígena... Com o meu despreparo como homem primitivo”.
Aponta a crítica Estrella de Diego, no texto Sobre o Mito do Pertencimento – Outras Formas de Ser Feminista, para os usos do cartão-postal nas manobras de construção, dominação e invenção de mundos, a serviço de agendas colonialistas. Por trás dos estereótipos de uma vida idílica e intocada, adivinhava-se a política genocida que se infiltrava na Amazônia, nas rodovias abertas pelo regime militar. Ao analisarmos as fotografias dos Bororo, Suiá, Trumai e Uaika, fica claro que se trata de indígenas encenando seu papel de “nativos”, seja varrendo o chão em frente à maloca, dançando, manejando o pilão da mandioca, ou posando para a fotografia ao lado da freira católica. O que Anna Bella Geiger faz nas imagens do conjunto “Brasil Alienígena” é reencenar essas encenações, na sua condição de artista, mulher, branca, urbana: na calçada de um prédio modernista em Copacabana, no terraço do seu apartamento no Flamengo, segurando uma sacola de supermercado, acariciando um animal de estimação.
“O centro não é simplesmente estático” (Circumambulatio, 1973)