ARTE E ANCESTRALIDADE
GÊ VIANA E GUSTAVO CABOCO CONSTROEM SUAS TRAJETÓRIAS A PARTIR DA COMPREENSÃO DA PRÓPRIA ANCESTRALIDADE
Gê Viana e Gustavo Caboco partem de suas histórias e raízes para agir no presente
NO TRABALHO DE GÊ VIANA, O CAPELOBO TORNA-SE, POR MEIO DA FICCIONALIZAÇÃO DE LENDAS MARANHENSES, UM ELEMENTO DE PROTEÇÃO ÀS MULHERES INDÍGENAS E NEGRAS VIOLADAS
A ARTISTA GÊ VIANA CRESCEU ESCUTANDO DO SEU AVÔ MATERNO SOBRE OS CAPELOBOS, CRIATURAS COM CORPO DE HOMEM, FOCINHO DE TAMANDUÁ E PÉS EM FORMA DE FUNDO DE GARRAFA, QUE VIVEM NO MEIO DO MATO E SAEM À CAÇA EM BUSCA DE CÃES, GATOS E RECÉM-NASCIDOS PARA SE
ALIMENTAR. Essa lenda popular indígena, que possui algumas variantes no Maranhão e no Pará, apesar de lhe dar medo, vinha também como uma lembrança presente na memória e no próprio corpo. “Tenho uma relação muito forte quando entro no mato, nesses lugares em que não é comum qualquer pessoa estar. Você acaba sentindo que pertence a uma coisa, a uma história brasileira”, diz à select.
Por conta do seu fenótipo, a artista foi questionada por um amigo a respeito de sua ascendência e decidiu, então, perguntar à sua avó materna, Maria José, se havia algum indígena na família. A resposta que ouviu (sobre uma mulher que tinha sido “pega no mato”) vem norteando sua trajetória desde então, em um trabalho que se dá em torno da compreensão de sua própria ancestralidade. A artista, que se aproximou do meio cultural por conta do teatro e da performance até cursar Artes Visuais na Universidade Federal do Maranhão, onde ingressou em 2017, começou nesse mesmo ano a produzir a série de fotomontagens Paridade. O trabalho é baseado na sobreposição de retratos de pessoas do seu próprio círculo, em diversas localidades do Maranhão, com imagens de representantes de diferentes etnias, procedimento que coloca em evidência a presença indígena em contextos urbanos contemporâneos. Entre os personagens da série estão tia Raimunda, irmã mais velha da sua avó, ao lado de uma mulher do povo Pawnee Squaw, e o avô Fernandes, sobreposto à imagem de um homem nativo da Amazônia em fotografia do mexicano Dominic Bracco.
Seus bisavós maternos (José Vitorino Ferreira Viana e Torcata Francisca Viana) nasceram na beira do Rio Parnaíba, na cidade de Buriti, e por algum tempo Gê Viana chegou a pensar que eram pertencentes ao povo Guajajara, etnia que predomina no Maranhão. Só com o tempo (e muita pesquisa) ela entendeu que a cidade de Brejo, muito próxima do local onde sua família estava, era território dos Anapurus, um povo denominado originalmente como Muypurás. Essa pesquisa, inclusive, resultou na primeira reunião dos parentes Anapuru Muypurá, que aconte
ceu em fevereiro deste ano e juntou um número pequeno – cerca de dez pessoas –, mas importante para o movimento de retomada da história, da cultura e da resistência do povo aldeado na região do Baixo Parnaíba. O encontro só foi possível graças ao envolvimento de Gê Viana e do arte-educador Lucca Muypurá, que, juntos, estão coletando e disponibilizando uma série de documentos e informações no perfil do Instagram. Foi nesse percurso que a artista entendeu que o povo ao qual pertence vivia da lavoura, identificando nos livros e fotografias aspectos da sua própria família. “A casa em que nasci foi construída com sacas de arroz de uma plantação que meu pai fez. É o povo da colheita, não é da guerra, da caça”, diz. “É muito bonito, porque fiquei por um período questionando se eu pertencia mesmo a esse povo.” No seu trabalho, essa busca em torno de sua ancestralidade aparece de modo contínuo, em obras que se relacionam e exploram o limiar entre realidade e ficção, como em Retiro de Caça (2019). Ali, por meio da ficcionalização de lendas maranhenses, o Capelobo torna-se, um elemento de proteção às mulheres indígenas e negras violadas. Nesse processo, a artista está cada vez mais preocupada em associar a produção textual à visualidade, por causa “da necessidade de falar sobre as coisas que aconteceram ao nosso povo afastado do seu lugar de origem”. Seu desejo é criar um livro com essas histórias pessoais, que se entrelaçam com a história do povo Anapuru. “Reimprimir o quase perdido, movimentar o desejo, picotar até perceber a carne do dedo afundar pela fricção do estilete. É a continuação herdada pelos tapuias (termo de origem tupi utilizado no início da colonização do Brasil para designar os indígenas que não falavam o tupi antigo), me lavo do sol na cidade para não deixar essa memória que nem foi minha, mas agora é”, escreve Gê Viana em um texto para o projeto Convida, do Instituto Moreira Salles.
O PROCESSO DE PESQUISA E CRIAÇÃO DE GUSTAVO CABOCO ENVOLVE UMA TENTATIVA DE AMPLIFICAR A VOZ DO POVO WAPICHANA E DE CAMINHAR EM DIREÇÃO ÀS SUAS PRÓPRIAS ORIGENS
DESTERRO
A busca que norteia todo o trabalho da artista Gê Viana não é distante da de Gustavo Caboco, artista nascido e criado em Curitiba, que se aproximou do povo Wapichana apenas na adolescência, uma vez que sua mãe, indígena dessa etnia, deixou a aldeia Canauanim ainda criança, em 1968, passando um período em lares provisórios em Boa Vista e Manaus, antes de ser efetivamente adotada por uma família curitibana. Para esse episódio narrado por sua mãe como adoção, Caboco prefere utilizar as palavras rapto e desterro. Sua relação com a aldeia, segundo ele, vem de dois momentos distintos: de ouvir as memórias de sua mãe, quando ela contava que brincava de pescar e pular no igarapé e, mais tarde, quando visitou o local pela primeira vez e pôde entender o que escutava. “Quando fui lá, consegui entender as minhas diferenças em relação ao contexto de minha mãe, mas também em relação ao meu contexto. Se eu, antes, já sentia que minha vida foi marcada por diferenças, senti o mesmo quando fui conhecer os meus parentes – também era completamente diferente deles, porque cresci num outro lugar”, diz Gustavo Caboco à select. A escolha do nome artístico Caboco, inclusive, é um desdobramento desse sentimento. “Essa palavra desloca a identidade indígena pro caboco, como se você não pudesse mais ser indígena e fosse o caboco.” Quem chama assim é o fazendeiro e é algo que diminui, mas tentei fazer uma inversão de olhar, o deslocamento como lugar de diálogo, entre Gustavo, Caboco e Wapichana”, explica. “O sistema de pensamento branco acaba usando do artifício da mistura para negar ou apagar raízes, então, para mim, esse caboco só faz sentido se estou em diálogo com os Wapichana.” Se Caboco, assim como Gê Viana, está procurando registrar essa história por meio da imagem e da escrita, os dois também têm aprendido outra forma de se relacionar, desenvolvendo um trabalho que aparece na transição entre uma busca individual para um processo coletivo. O divisor de águas, no caso do artista curitibano, foi a participação no Concurso Tamoios, em 2018, quando ele pôde se aproximar de um grupo de escritores indígenas e começou, a partir dali, a se aprofundar, cada vez mais, na história de seus familiares – entre eles o tio Casimiro Cadete, que, em sua visita à aldeia, o presenteou com um dicionário Wapichana-português. “Já trabalhava há muito tempo entendendo minhas questões indígenas, mas vivia deslocado de
qualquer tipo de circuito. Não cresci em um contexto de relação com indígenas, a não ser com minha mãe. Sempre estive à margem, inclusive com muita confusão nesse pertencimento”, diz o artista.
RETORNO À TERRA
No texto apresentado na ocasião, intitulado A Semente de Caboco, ele parte justamente das tentativas em organizar essa história, explorando com desenho e poesia questões de silenciamento e falta de escuta. “Retorno à terra” é o nome dado ao seu processo de pesquisa e criação, que envolve tanto uma tentativa de amplificar a voz do povo Wapichana quanto o caminhar para as suas próprias origens. O corpo em movimento está presente em todo o conjunto do trabalho de Caboco, e aparece de forma literal em Plantar o Corpo (2017), no qual o artista registra a si mesmo em uma sequência de duas imagens: na primeira, está deitado em um solo arenoso, pouco fecundo; na segunda, aparece imerso em uma cachoeira, fundindo-se à natureza. Em processo de preparação para sua participação na 34a Bienal de São Paulo, Caboco reuniu-se recentemente, no Rio de Janeiro, com uma equipe de trabalho Wapichana, que inclui a historiadora Roseane Cadete, a antropóloga Paula Berbert, o fotógrafo Wanderson Cadete, além de sua mãe, Lucilene Wapichana, e um artista mirim, de apenas 9 anos. “Meus parentes vieram de Roraima, eu e minha mãe saímos de Curitiba e estamos nesse ponto de encontro, olhando para o Rio Imperial e as travessias do ponto de vista histórico”, conta o artista, que insiste no fato de que o encontro já significa no próprio trabalho. “A gente não precisa estar em Roraima ou no Paraná para saber da nossa história, a gente pode estar em qualquer lugar, e esse processo de retorno à terra Wapichana não é uma caminhada individual, mas de relações”, diz Caboco. “É um sentimento de pluralidade e coletividades muito mais do que de exclusividade.”