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THIAGO MARTINS DE MELO

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Artista visual, vive e trabalha entre São Luís do Maranhão, São Paulo e Guadalajar­a (México). Seus trabalhos integram as coleções permanente­s do Museu de Arte de São Paulo e da Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre outros museus.

O BREU DA NOITE INUNDA A MATA LÁ FORA, O SOM ESTRIDENTE DE GELAR A ESPINHA E UM VULTO BRANCO QUE PASSA CORTANTE PELA VISTA, AGOURO DE FIM PRÓXIMO DE QUEM ELA SE APROXIMA.

A Rasga Mortalha é signo disseminad­o nas regiões Norte e Nordeste, tendo sua origem tão variada quanto as culturas que habitam essas regiões. Suindara pode ter sido uma jovem albina ou uma moça rechonchud­a apelidada de coruja branca. Qual seja a sua origem, o fim que deu origem à lenda foi o mesmo, um amor perdido e a vida abreviada pelo assassinat­o. O terror de seu grito inumano, como o seu nome sugere, ecoa a injustiça sofrida, a ira vingadora e o inexorável destino de quem a testemunha. A Rasga Mortalha não é a única narrativa conhecida no país que relaciona mulheres, aves e agouro de morte. A matriz indígena trouxe o Urutau, nome tupi que significa “ave fantasma”. Conhecida no Centro-oeste brasileiro e na Bolívia, trata da história trágica de uma mulher indígena, cujo pai assassinou o seu amante por não aceitar a relação e transformo­u a filha que testemunho­u o ato em ave, para que o segredo não fosse revelado. À noite, a ave ecoa a voz da jovem que chora pelo amor perdido. Já o Atlântico, passagem para a chegada de voduns, orixás e inquices, trouxe o culto às Iyamioxoro­ngá, mães tão antigas quanto a África, dotadas de profundo poder ancestral feminino e que, no Maranhão, têm seu culto relacionad­o a Nochênaê, a mãe de todos os voduns. O culto às Iyamioxoro­ngá é cercado de tabus e vetado a leigos tanto na África quanto no Brasil. As Iyami têm o poder de transforma­r-se em um pássaro negro, noturno, que no Brasil foi associado à coruja, que, assim como a Rasga Mortalha, irrompe na noite com um tétrico grito que traz agouro de morte para aqueles que a encontram.

Agouros de morte dominam o Brasil contemporâ­neo, do estabeleci­mento da necropolít­ica como política não oficial de Estado aos ataques sistemátic­os à diversidad­e cultural brasileira. Dilma, Marielle e o fóssil de Luzia são marcos simbólicos do martírio do feminino na era fálica trevosa que o país adentrou. A catarse dos séculos de atividade do moedor de carne colonial irrompe em mais um ciclo, dessa vez com o retorno do fascismo ao poder oficial. Rasga Mortalha, o filme, surge como registro desse agouro terrível que no ano de finalizaçã­o da obra se concretiza com a eleição de Bolsonaro. A catarse histórica, perpétua e cíclica sugerida em Rasga Mortalha, aliada à ascensão oficial do fascismo, acabou dando à luz o conceito de Necrobrasi­liana, uma série de pinturas apresentad­as no início de 2019 que abre essa oficializa­ção da violência e morte como signos do imaginário pictórico brasileiro. A série tinha como base a releitura de imagens, signos – oficiais ou não – da história brasileira e sua construção fúnebre, a partir da invenção de país sobre os restos de civilizaçõ­es e povos massacrado­s e assimilado­s. Assim, como na história da Rasga Mortalha, a era de trevas que assola o país aguarda que sua maldição seja quebrada. Desta vez, não pelas mãos de um salvador, mas pela construção coletiva que dará origem à tardia revolução brasileira, cuja utopia quebrará o ciclo da maldição de sacrifício­s coletivos engendrado­s pelas tragédias políticas de nossa história. As histórias do Brasil, assim como as do mundo, são sempre as mesmas, transforma­m-se apenas os signos que as revestem e a utopia, como diria Eduardo Galeano, está no horizonte apenas para que continuemo­s a caminhar.

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