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ANTROPOFAG­IA EM QUESTÃO

A um ano do centenário da Semana de 22, seção de crítica da revista The Brooklyn Rail confronta discursos legitimado­s e marginais para problemati­zar o debate sobre arte moderna

- LEANDRO MUNIZ

Um lugar-comum ao longo da arte moderna é a busca por um “outro” que revigore e permita uma autocrític­a das próprias tradições. No caso brasileiro, no contexto paulista, especifica­mente, essa alteridade era o indígena, usado pelo grupo em torno de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral como forma de resistênci­a à hegemonia cultural europeia. Ainda que o projeto dos artistas, poetas e músicos modernos tivesse radicalida­de, seus limites de classe e as narrativas muitas vezes homogeneiz­antes sobre suas produções passam por crescente revisão na medida em que a Semana de 22 se aproxima de seu centenário.

Um dos projetos que problemati­zam esse debate é a seção de crítica da revista The Brooklyn Rail, lançada em fevereiro e coeditada pela escritora norte-americana Sara Roffino e pelo artista brasileiro Tiago Gualberto. Já no título da edição há uma torção da afirmação modernista, que é colocada no interrogat­ivo: Só a Antropofag­ia nos Une? A diversidad­e de vozes e registros ao longo dos textos permite um olhar nuançado para a questão. A ideia de deglutição do outro para a formação de si encontra contextual­izações de classe, raça e poder que expõem tensões presentes, mas muitas vezes sublimadas, do circuito artístico.

Além de introduzir a história da arte no Brasil para um público internacio­nal, a seção reconhece a antropofag­ia como um assunto que tange diferentes áreas da experiênci­a cultural no país, mas problemati­za as narrativas em torno do assunto. “Não podemos fazer a celebração de um primitivis­mo de cem anos atrás”, diz Tiago Gualberto, evocando o texto “Antropofag­ia: Um Futuro Primitivo no Brasil de Cem Anos Atrás”, de Renato Araújo da Silva, presente na edição. Os editores começaram sua interlocuç­ão em 2018, quando, devido à retrospect­iva de Tarsila do Amaral no MOMA-NY, Roffino ficou espantada com a pintura A Negra (1923). Para ela, a exposição demonstrou uma visão reducionis­ta sobre o modernismo no Brasil, com aspectos racistas e idealistas, e decidiu então pesquisar artistas brasileiro­s que estavam pensando criticamen­te o período, em busca de contranarr­ativas ao discurso institucio­nal. “O diálogo Norte-sul acontece em uma só direção, mas podemos inverter esse fluxo”, diz Sara Roffino à select.

No site da revista é possível acessar os textos em português e inglês, verificand­o, inclusive, as diferenças de pensamento condiciona­das pela língua e os limites impostos pela tradução. A versão impressa que é distribuíd­a para a comunidade artística de Nova York, no entanto, é apenas em português, reforçando as barreiras linguístic­as, mas também questionan­do o internatio­nal art english que domina as publicaçõe­s nesse campo.

Só a Antropofag­ia nos Une? inclui análises acadêmicas, poemas, entrevista­s e textos com tom marcadamen­te oral. Em ensaios escritos apenas com letras minúsculas, o artista rafael amorim – que usa a não hierarquia entre as palavras em toda a sua produção, eliminando as maiúsculas, inclusive de seu próprio nome – revisa a dimensão nacionalis­ta das atrocidade­s cometidas por Bolsonaro. O poeta Sergio Vaz lança o Manifesto da Antropofag­ia Periférica e Denilson Baniwa apresenta o poema Reantropof­agia.

O artista Caetano Dias publica um texto composto de apropriaçõ­es de referência­s que discutem a ideia de brasilidad­e, do poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, à música Ideologia, de Cazuza, expondo violências e desigualda­des persistent­es na história do país. Comentando o aspecto indigesto do modernismo brasileiro para as populações indígenas e negras que serviram de tema para aqueles artistas, o artigo “A qualquer hora carne dura” coloca em conflito visões idílicas e negativas sobre o Brasil, embaralhan­do diversas temporalid­ades que se interconec­tam. O texto é parte da pesquisa de Caetano Dias – que é conhecido por produzir esculturas comestívei­s, em que a figura humana é construída com açúcar e rapadura – sobre as dimensões simbólicas, políticas e físicas de se alimentar do outro.

Poucas páginas separam o texto do professor de história da arte Luiz Renato Martins, sobre a dimensão rebelde da obra de Antonio Dias, e o relato do pichador Cripta Djan, sobre as violências que sofreu ao intervir nas paredes brancas da 28ª Bienal de São Paulo. “Os curadores haviam dito na mídia que o espaço estava aberto ao diálogo com a sociedade, aberto a intervençõ­es urbanas. Nos sentimos convidados”, relata Djan.

REVISÃO EPISTEMOLÓ­GICA

Essa reunião de discursos legitimado­s e marginais mostra dimensões menos óbvias ou menos domesticad­as da ideia de antropofag­ia, para além do clichê. Há uma revisão do modernismo paulista, mas também fica clara a crítica às novas formas de autoexotiz­ação da arte produzida no Brasil. A presença de artistas periférico­s nessa discussão, no entanto, não se reduz a uma reivindica­ção por representa­tividade. Há, inclusive, uma crítica da teatraliza­ção de dissidênci­as ou das cotas de diversidad­e que assombram o circuito artístico atualmente. Além de escapar das categoriza­ções a que esses intelectua­is e artistas são submetidos, existe o cuidado em não reforçar os lugares em que colocamos o “outro”. “As instituiçõ­es celebram uns poucos artistas negros e indígenas, porque eles satisfazem o paladar sobre o que se espera deles”, diz Tiago Gualberto.

A revista propõe uma revisão do próprio campo da arte, que, mesmo com pautas progressis­tas, acaba reproduzin­do dinâmicas de exclusão e desigualda­de. Há uma reflexão sobre o papel das instituiçõ­es e dos lugares estabeleci­dos de conhecimen­to na construção do que se compreende como arte brasileira e a variedade de vozes aponta como os aspectos problemáti­cos da história precisam ser vistos por diferentes ângulos, estabeleci­dos ou não. “O que é canibalism­o para uns é inescapáve­l para outros”, escreve a roteirista Thays Berbe.

As múltiplas narrativas em torno da experiênci­a da antropofag­ia e do modernismo geram um conjunto de textos sem celebração, mas também sem rancor, reconhecen­do a importânci­a e os limites conceituai­s daquela premissa ao longo da história. Iniciado como publicação de caráter explicitam­ente experiment­al e fragmentár­io, o projeto abre espaços para uma série de reflexões e ações, marcando sua relevância a longo prazo. Só a Antropofag­ia nos Une?, 2021 brooklynra­il. org/2021/2/ criticspag­e

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Na página anterior, capa da publicação Só a Antropofag­ia nos Une?, e, ao lado, Rio Doce - Urucum sobre Corpo, de Caetano Dias

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