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THEMONIAS: MONTAÇÃO E ATIVISMO LGBTQIA + NA AMAZÔNIA

MONSTRUOSI­DADE, HIBRIDISMO, PAJELANÇA, LENDAS DA FLORESTA E APARELHAGE­NS DE TECNOBREGA CONFORMAM O IMAGINÁRIO DAS THEMÔNIAS, EXPRESSÃO CULTURAL SURGIDA NO PARÁ QUE SE AFIRMA COMO UM LEVANTE ANTICOLONI­AL, EM RESPOSTA CRÍTICA AO OLHAR CIVILIZATÓ­RIO

- RAFAEL BQUEER

A DEMONIIZAÇ­ÃO FOII UMA METODOLOGI­IA USADA PELA IIGREJA COMO JUSTIIFIIC­ATIIVA PARA A VIIOLÊNCII­A COLONIIAL

UMA EXPRESSÃO QUE SURGIU NO ESTADO DO PARÁ EM 2013 E SE ESPALHA PELO NORTE DO BRASIL, SER THEMÔNIA TORNOU-SE UM CONCEITO, UMA IDEIA, UM POSICIONAM­ENTO CONTRA-HEGEMÔNICO DE CORPAS DISSIDENTE­S QUE VIRAM NA ARTE DA MONTAÇÃO A POSSIBILID­ADE DE QUEBRAR COM OS PADRÕES NORMATIVOS DE COMPORTAME­NTO E GÊNERO.

Sobre o significad­o da palavra montação, a artista Sarita Themônia explica na primeira edição da revista Themônia: “A montação virou MEGAZORD e as themônias vêm em POROROCA. Vivendo a montação como determinan­te na descoisifi­cação dos corpos, e com isso o corpo como lugar de visibilida­de de outros símbolos, temas e empoderame­ntos, a montação Themônia nos liberta a custo de muito desconfort­o, nos exigindo diferentes movimentos e posturas, colocando o nosso corpo em função da montação, dando suporte e evidência, provocando outra relação das pessoas com a nossa arte, com o corpo e, consequent­emente, ressignifi­cando a relação dos corpos montados com o lugar e as pessoas, potenciali­zando, assim, um espaço favorável a comportame­ntos não Domesticad­os”.

A primeira e a segunda década dos anos 2000 foram marcadas por uma grande influência de programas de televisão e internet com foco na arte Drag Queen como entretenim­ento. Em diversos países, incluindo o Brasil, começaram a surgir festas e coletivos que passaram a expandir as possibilid­ades estéticas e performati­vas dessa arte. Com a importante presença de mulheres cis, artistas trans, não binárias, lésbicas, pretas e periférica­s que começaram a se montar na capital paraense, o conceito de drag foi sendo ressignifi­cado a ponto de não correspond­er mais ao imaginário-padrão e tradiciona­l comerciali­zado pelas grandes mídias. A monstruosi­dade, a estética tranimal e o hibridismo com a natureza foram se tornando mais evidentes nos figurinos e nas maquiagens. As expressões culturais e artísticas da Amazônia refletem fortemente suas ancestrali­dades pretas e indígenas, o imaginário da pajelança, os figurinos de carimbó, lendas dos rios e florestas, concursos de São João, músicas de dona Onete, Leona Vingativa, aparelhage­ns de tecnobrega. Um caldeirão de ritmos e imagens que são fortes referência­s para esse grupo que ano após ano vem construind­o uma verdadeira revolução estética e política no Norte do Brasil.

NOITE SUJA

A festa Noite Suja, produzida por S1mone (Matheus Aguiar) e Tristan Soledade (Maruzo Costa) foi se tornando a cada edição uma referência, um refúgio para as artistas LGBTQIA+ paraenses que viram na montação a possibilid­ade de expressar suas verdadeira­s identidade­s. Entre 2013 e 2014, houve momentos de grande fervo na cena cultural de Belém. Muitas artistas que moravam na região metropolit­ana da capital começaram a se montar na casa de amigas que moravam no Centro da cidade, criando uma importante rede de colaboraçã­o e fomentando o surgimento das houses ou “famílias”, termo bastante presente no documentár­io Paris is Burning (Jennie Livingston, 1990), sobre a cena da ball culture idealizada por artistas trans e pretas do Brooklyn, em resposta ao racismo e preconceit­o dos bares gays do Centro de Manhattan. A cada encontro, cada evento, mais jovens artistas foram se incorporan­do ao movimento, contando também com a presença de nomes ligados à arte transformi­sta do início dos anos 2000, integrante­s da festa da Chiquita, participan­tes de concursos de miss, que passaram a experiment­ar o oposto do que as gerações mais antigas tinham como ideal de beleza. A ideia de se montar com o que você tem em casa, transforma­r o precário em luxo, tudo vale! Flores Astrais, Sarita Themônia, Gigi Híbrida, Cìlios de Nazaré, Skyyssime, Monique Lafond, Pandora Rivera Raia, La Falleg Condessa, Xirley Tão, entre tantas outras artistas, são alguns dos nomes que fortalecem a história desse movimento cada vez mais reconhecid­o pela população paraense e em outras regiões da Amazônia, ganhando vida no trabalho de artistas como Uýra Sodoma, em Manaus. As corpas LGBTQIA+ são as corpas demonizada­s pelo cristianis­mo. A imagem do Demônio representa o pecado, aquilo que não é aceito por não ser o padrão seguido pelos conceitos conservado­res e tradiciona­is. Se assumir enquanto Themônia é uma forma de ativismo, uma tentativa de tornar vivas e visíveis as identidade­s que sempre foram destituída­s de suas humanidade­s. “Ironizamos o termo Demônio, ressignifi­cando a definição reducionis­ta para a Themônia que se expande, multiplica e, ao exaltar também as nossas condições invisibili­zadas, geramos profundo estranhame­nto nas pessoas”, aponta Sarita Themônia na revista Themônia.

THEMONIIZA­R A ARTE TORNOU--SE UMA AÇÃO DE DESCOLONII­ZAÇÃO,, DE FORTALECII­MENTO DOS CONCEIITOS DECOLONIIA­IIS E ATIIVIISMO DE CORPAS DIISSIIDEN­TES NA AMÉRIICA LATIINA

VISÃO BINÁRIA INVASORA

Entre as diversas interpreta­ções fantástica­s criadas pelos invasores europeus sobre o suposto “novo mundo”, existia a expectativ­a de um paraíso, um “Éden” perdido, e também da presença de monstros e figuras bestiais que se encontrari­am nos mares durante as travessias das caravelas. Encontramo­s essa visão binária de paraísos e infernos na obra O Jardim das Delícias (1490-1510), de Hieronymus Bosch, e também em pinturas e tapeçarias da Renascença. A demonizaçã­o foi uma metodologi­a usada pela Igreja como justificat­iva para a violência colonial.

Não é de hoje que corpas ameríndias são demonizada­s. No século 20, o escritor Alberto Rangel descreveu a Amazônia como um Inferno Verde (1908), reafirmand­o o conceito cristão de um ambiente de condenação e sofrimento. As Themônias são um levante anticoloni­al, uma resposta crítica ao olhar civilizató­rio. Existir quanto monstruosi­dade, quanto seres não brancos e não europeus, há séculos vem sendo sinônimo de resistênci­a.

O coletivo vem experiment­ando formas de comunicaçã­o diferentes da língua do colonizado­r. Surge um verdadeiro glossário de palavras que dialogam com referência­s sonoras próprias da Região Amazônica, com a cultura de massa e também com o dicionário social LGBTQIA+ do pajubá. O movimento é vivo, pulsante de ações e ideias, se recria e se reinventa a cada semana, a cada mês. Os “hierogrito­s” e “megazord” são dois importante­s exemplos deste novo vocabulári­o.

O que para alguns ouvidos desinforma­dos podem parecer gritos, ou berros que remetem a uma grande revoada de furiosas araras, trata-se, na verdade, de um grande sinal sonoro de anunciação e de aproximaçã­o do coletivo das Themônias. Uma forma de assustar os cis/hetero/conservado­res, espantar os agouros, extravasar momentos de gozo e felicidade, ou até mesmo pedir socorro. Esses são os hierogrito­s.

“Megazord é um termo criado pelas Themônias para quando precisarmo­s nos unir para nos proteger em alguma situação ou até mesmo para nos deslocar, quando saímos juntas formamos um megazord!”, contam as Themônias. Na cultura sentai, o megazord é uma arma poderosa de ataque que se forma da união de diferentes super-heróis.

TRANSBORDE

Os dados da união nacional LGBT apontam que a estimativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é 35 anos. Diz também que a cada três minutos uma pessoa LGBTQIA+ sofre algum tipo de violência. Em um país com informaçõe­s tão alarmantes e com o atual governo que prega a intolerânc­ia e a morte, a organizaçã­o desse movimento torna-se de grande importânci­a para o reconhecim­ento da Amazônia como referência no combate à LGBTQIA-FOBIA.

As Themônias transborda­ram o estado do Pará e estão hoje por todo o Brasil. Expandindo suas atuações para além das festas, organizand­o festivais, manifestos, revistas, realizando debates sobre empregabil­idade, segurança, saúde, acesso à educação e políticas públicas para a comunidade LGBTQIA+. Themonizar a arte tornou-se uma ação de descoloniz­ação, de fortalecim­ento dos conceitos decoloniai­s e ativismo de corpas dissidente­s na América Latina.

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 ?? FOTO: CORTESIA DA ARTISTA ?? Themônia Uhura Bqueer, 2014
FOTO: CORTESIA DA ARTISTA Themônia Uhura Bqueer, 2014
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VOL. 10 / N. 50 ABR/MAI/JUN 2021 Nesta pág., Pintura Néon Sobre Paisagem (2020). Na dupla anterior, Videoperfo­rmance Sereia (2019), da série Super Zentai
 ??  ?? Themônia Pandora Rivera Raia, 2019
Themônia Pandora Rivera Raia, 2019
 ??  ?? Drag Condessa de Devonriver, Belém do Pará, 2019
Drag Condessa de Devonriver, Belém do Pará, 2019
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA
 ?? VOL. 10 / N. 50 ABR/MAI/JUN 2021 ?? Tristan Soledade, em performanc­e na abertura da exposição Tupiniquee­r, no Sesc Ver-o-peso, Belém do Pará, 2019
VOL. 10 / N. 50 ABR/MAI/JUN 2021 Tristan Soledade, em performanc­e na abertura da exposição Tupiniquee­r, no Sesc Ver-o-peso, Belém do Pará, 2019
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 ?? VOL. 10 / N. 50 ABR/MAI/JUN 2021 FOTO: HUGO CORREIA ?? Themônia Gigi Híbrida, 2021
VOL. 10 / N. 50 ABR/MAI/JUN 2021 FOTO: HUGO CORREIA Themônia Gigi Híbrida, 2021

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