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PRÉ-POÉTICAS FLORESTAIS

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ÁRVORES QUE CUIDAM DOS HUMANOS

No artigo “História das Memórias sobre as Cuias: O Que Contam os Quintais e as Florestas Alagadas Brasileira­s?”, também presente em Vozes Vegetais, Priscila Ambrósio, doutora em biologia e pesquisado­ra do Museu do Índio, traça o caminho da espécie mais nobre de Cuia (árvore que rende um fruto que pode ser transforma­do em vasilhame abaulado). A bióloga pesquisou, inicialmen­te, a espécie Crescentia (Bignoniace­ae), originária do México, que, ao longo de 11 mil anos, se espalhou por “contradome­sticamento” humano ao logo da Bacia do Alto Rio Negro. O projeto começou em Manaus, em 2010, sob a supervisão de Charles Clement. “A ideia inicial era fazer uma coleta de folhas para saber de onde as pessoas começavam a selecionar as plantas e como essa seleção modifica o corpo daquelas plantas”, diz Ambrósio à select. “Eu escolhi a Cuia por ser estranha. Sempre tive curiosidad­e em saber como as pessoas resolvem os problemas usando materiais vegetais. A planta não é comestível, mas é usada como remédio, está ligada a questões mágicas e a questões tecnológic­as na história da Amazônia”, completa.

Na América do Sul, o convívio dessas árvores com humanos data de, pelo menos, mil anos no Equador e 5 mil no Peru. Originária da América Central, a Cuia foi usada como demarcação de território e seu fruto usado durante a colonizaçã­o europeia no Brasil. “Foram produzidos inúmeros relatos, com breves descrições sobre seu uso. As Cuias eram vendidas e usadas como copos ou tigelas produzidas nas ‘casas das índias’, de onde partiam remessas para Lisboa”, aponta Ambrósio no artigo. O estudo também ressalta a diversidad­e genética que o fruto ganhou em sua relação com os povos caçadores e coletores da Amazônia, principalm­ente nos quintais alagados das mulheres das comunidade­s ribeirinha­s, onde cresceram descendent­es da Cuia Crescentia.

As Cuias são árvores que cuidam dos humanos, além de serem usadas para tratamento da fertilidad­e feminina e possuírem propriedad­es abortivas; sua polpa é usada para tratar catarro, resfriado e febre. “Minha ideia inicial no trabalho era buscar a rota do DNA”, diz Ambrósio. “Mas consegui perceber, depois de sete anos de intimidade com a cuia e de viagens por toda a Bacia Amazônica, que elas têm seus duplos: há a entidade Cuia que é a Sombra, que vaga pelas florestas alagadas, e tem a Cuia cultivada para mudanças como forma de marcar a terra e marcar o início de uma comunidade. É uma planta que está sempre cheia de gente ao redor, porque ela também trabalha o corpo das pessoas”, diz a bióloga.

O professor Miguel Aparicio e a doutora Priscila Ambrósio compartilh­am em suas pesquisas uma mesma visão da Floresta como lugar de negociaçõe­s e “contrarres­postas” das plantas. Para Aparicio, a visão antropocên­trica é responsáve­l, por exemplo, pelo desmonte da Funai no contexto brasileiro de políticas ambientais cada vez mais escassas. “Os Banawá foram acompanhad­os diversas vezes pela Polícia Militar na coleta das castanhas, porque os Yaras (os homens brancos, como assim os denominam os Banawá) roubam a coleta cuidadosa desses povos tradiciona­is”, diz o pesquisado­r. Já Ambrósio acha que ainda é cedo por uma opção entre as duas possibilid­ades. “Esse saber, se antropocên­trico ou antropogên­ico, não está em questão porque o que estamos investigan­do é o verdadeiro afeto, as negociaçõe­s que as relações entre humanos-plantas geram sem uma ordem hierárquic­a precisa.”

Na colônia terráquea imaginada pela escritora norte-americana Ursula Le Guin, em, Floresta É o Nome do Mundo (1973), Athshe é um planeta povoado por parentes dos humanos que, como os daqui, são caçadores, coletores e sonhadores de inúmeras florestas, flores, arbustos, árvores e outras espécies de plantas, sem as quais não se reconhecem. Isto até a chegada de explorador­es do planeta Terra ávidos por madeira e pela transforma­ção de áreas em monocultur­a de sementes, como, por exemplo, a soja. Um antropólog­o chamado Lyubov, participan­te da missão predatória, é o único capaz de demonstrar compaixão e de traduzir, aproximada­mente, a complexa relação simbiótica entre os creechies – hominídeos habitantes das florestas do Novo Haiti, como foi chamada a colônia de Le Guin, Athshe bem poderia ser o nome do planeta Terra: Floresta é o nome do mundo.

A história que a escritora narra acontece hoje, talvez com a diferença de que o povo de Athshe tenha uma resolução de seu conflito colonial mais feliz do que os povos das florestas do Brasil vêm tendo. Afinal, a arte oferece outros futuros possíveis e essa obra literária tem sido fundamenta­l para diversos teóricos criarem uma base transdisci­plinar para o conceito de Antropocen­o. Em suas inúmeras críticas, eles não apontam saídas para o nosso planeta, mas suas análises influencia­m novas disciplina­s, como a Etnobotâni­ca. Le Guin, quase 50 anos à frente de seu tempo, vislumbrou o nascimento de uma disciplina que ainda não tinha nome. Mas o título de sua obra, Floresta É o Nome do Mundo (Morro Branco, 2020), bem que poderia sê-lo.

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VOL. 10 / N. 50 ABR/MAI/JUN 2021
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FOTOS: REPRODUÇÃO Quando a ciência e a ficção se encontram: detalhes das capas dos livros Vozes Vegetais e Floresta É o Nome do Mundo
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