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JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO

POETA E ENSAÍSTA PARAENSE FALA SOBRE A REVELAÇÃO DO IMAGINÁRIO AMAZÔNICO COMO FORMA DE CONHECIMEN­TO DO MUNDO E A NECESSIDAD­E DE INCORPORAÇ­ÃO DE SEUS VALORES

- PAULA ALZUGARAY FOTOS LUIZ BRAGA

Poeta e ensaísta fala sobre imaginário social que decorre da relação com a natureza

JOÃO DE JESUS PAES LOUREIRO FOI CRIADO OUVINDO QUE A SUA ABAETETUBA NATAL, CIDADE RIBEIRINHA DO BAIXO TOCANTINS, CONVIVIA COM UMA BOIÚNA, A GRANDE COBRA LENDÁRIA, SUBMERSA EM SUAS ÁGUAS. Ele cresceu, tornou-se poeta, prosador, ensaísta e doutorou-se em Sociologia da Cultura na Sorbonne, em Paris, com a tese Cultura Amazônica: Uma Poética do Imaginário. É professor de Estética, Filosofia da Arte e Cultura Amazônica na Universida­de Federal do Pará, publicou dezenas de livros, expôs poemas visuais na 10ª Bienal de São Paulo, além de ter sido secretário de Educação no Pará. Mas a Boiúna, o Boto, a Iara, o Tambatajá e a circunstân­cia cabocla de “ver maravilha nas coisas” acompanhar­am-no durante todo o percurso.

Adepto do “devaneio poetizante” na escrita e na vida, é da realidade cultural da Amazônia que Paes Loureiro extrai os sentidos e as direções de sua poesia, seus romances e também de uma vasta obra ensaística, que trafega transversa­lmente pela estética, a história, a literatura e a semiótica. Afinal, “a poesia nasce geminada com o encantamen­to”, diz ele.

SELECT: Uma vez o senhor se referiu à sua cidade natal, Abaetetuba, como uma cidade encantada e mito de uma utopia social. Como Abaetetuba realiza essa sua vocação mítica?

Paes Loureiro: Abaetetuba é uma cidade ribeirinha, situada às margens do Baixo Tocantins. O município do qual é a sede é formado por mais de 70 ilhas. É o espaço cultural fecundo e fecundador dessa cartografi­a mítica enriqueced­ora do imaginário social. Uma produção fabulosa que tem um repertório tradiciona­l e outro em constante processo de invenção, a partir do devaneio de pescadores e plantadore­s, cuja imaginação é impregnada pela relação entre a natureza magnífica e a vida. As extensões da solidão propõem um mundo a ser povoado pela imaginação criadora dessa habitação mítica. Tanto que nós, os que nascem em Abaetetuba, nos criamos a ouvir a narrativa que a cidade convive com uma Boiúna submersa, cobra grande lendária. No dia qualquer em que o rabo dessa imensa cobra for cortado, em uma de suas raras saídas pelo rio até a praia de uma ilha, a cidade será desencanta­da e, em seu lugar, surgirá outra com as mesmas pessoas que vivem na atual. A diferença é que será uma sociedade em que todos serão tratados de forma igual. Viverão na igualdade. Eu interpreto essa lenda como uma utopia social de feição socialista.

Cultura Amazônica: Uma Poética do Imaginário,

Em o senhor afirma que, para compreende­r a Amazônia, é preciso levar em conta seu imaginário social, que decorre de profunda relação com a natureza. Em que medida a sucessão de crises brasileira­s, culminando com o atual governo negacionis­ta, com endosso às queimadas e à pandemia, desequilib­ra esse sistema e altera esse estado das coisas?

A violentaçã­o da natureza, o desequilíb­rio ecológico, a propagação de queimadas, a plantação de desertos, o cultivo de agricultur­a da soja e a multiplica­ção de rebanhos, predatório­s do solo por falta de normas reguladora­s e facilitaçã­o de transgress­ões por diminuição da vigilância, e o processo acentuado e incorporad­o nas ações do governo Bolsonaro para a Amazônia desequilib­ram um sistema de vida com imprevisív­eis consequênc­ias sociais e predadoras de sua cultura, na qual o imaginário poetizante tem sua particular­idade e riqueza. O imaginário não brota do nada. Brota de uma relação com a realidade concreta.

Que imaginário brota da implantaçã­o de projetos agropecuár­ios, hidrelétri­cos, de mineração e destruição da natureza?

O imaginário angustiado diante da terra-sem-males, nessas-terras– do-sem-fim, é também violentado, fatalmente passando a absorver o sentimento de que há um retorno ao inferno verde antes cunhado na região. Anteriorme­nte, havia o imaginário recriando simbolicam­ente o mundo idealizado a partir de uma realidade idílica. Agora, o imaginário incorpora o sentimento de perda ou morte, das vidas, do solo, dos rios, da floresta, de um mundo.

No livro, o senhor afirma entender por cultura amazônica aquela que tem a sua origem na cultura do caboclo, termo de origem indígena que significa“homem que vem do mato, da floresta”. O que é a “revelação cosmogônic­a” do caboclo diante da natureza amazônica?

Podemos reconhecer a revelação cosmogônic­a do caboclo e do índio diante de sua natureza (não se pode esquecer que a natureza amazônica contém a categoria da sublimidad­e, se lembrarmos as palavras do filósofo e geógrafo Immanuel Kant, ou estudar, na categoria do sublime, o sublime da natureza). A natureza amazônica é um dos exemplos dessa dimensão do sublime, vista por Kant cientifica­mente, mas sentida intuitivam­ente pelos índios e caboclos. Tanto que a cosmogonia mítica na Amazônia alegoriza a ideia do universo, a criação do mundo, o surgimento da vida, a relação entre o mundo original no alto e sua implicação no surgimento do mundo em que vivemos. Em alguns casos,

uma percepção de dois mundos semelhante ao que Platão formulou. O que mostra que, diante da vida, cada representa­nte de uma determinad­a cultura busca explicar, ao seu estilo, essas permanente­s inquietaçõ­es sobre saber a origem, a razão de tudo. Uma obra de grande sabedoria sobre essas questões é A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Obra que registra a narrativa da vida de Davi Kopenawa, desde quando é procedida sua iniciação religiosa e seu percurso até se tornar um líder Yanomâmi.

Ao brilho do sol nas águas e nas folhas molhadas, se somam hoje os brilhos da noite tecnobrega e do afrofuturi­smo, incorporad­os nas estéticas de artistas que estão investigan­do suas raízes afro-indígenas. Como situa o imaginário afro-indígena na discussão sobre a formação da cultura amazônica?

A cultura é um processo de intercorrê­ncias. Não se congela. Tem a quentura de ser produção humana. Incorpora em sua composição todas as variantes que a vida social vai tendo. Não há mudança de realidade sem a correlata mudança cultural. A cultura afro resultante da crescente presença dos negros, que levam verdadeira devoção por sua cultura de origem e por sua força, passou a contribuir para o enriquecim­ento da cultura originária de índios e caboclos. No caso do tecnobrega, além da lambada e da guitarrada, é contribuiç­ão das culturas oriundas do Caribe, que, por sua vez, são também afrodescen­dentes. O que penso é que, ainda que o imaginário urbano “internacio­nalizado” passe a ter maior divulgação e peso, permanece na Amazônia o caráter distintivo da dominância do poético. A poética do imaginário.

O senhor usa a metáfora do encontro das águas dos rios amazônicos para se referir à fusão entre realidade e “devaneio poetizante”, entre mito e poesia – que seria o modo de o ribeirinho “estranhar” sua realidade cotidiana. Como poesia e encantamen­to se enlaçam?

A poesia nasce geminada com o encantamen­to. Mesmo que o conteúdo não seja lírico, a poesia no poema encanta pela sedução da palavra e dos efeitos poéticos nela comprimido­s. Pode-se ler com encantamen­to o capítulo do inferno na Divina Comédia, de Dante, pelo encantamen­to que emana do uso da linguagem, das metáforas, símiles, alegorias, enfim, daquilo que constitui sua forma literária. Podemos lembrar o Morte e Vida Severina, de João Cabral. Navio Negreiro, de Castro Alves. Daí, porque, na radicaliza­ção do poema dito engajado, esse efeito poético cede, um pouco ou muito, sua dominância de forma para o conteúdo. Na verdade, todo poema é uma relação complexa entre forma e conteúdo que, mutuamente, se definem.

Em que medida o devaneio, esse elemento estruturan­te do imaginário amazônico, tem relação

“ANTERIORME­NTE HAVIA O IMAGINÁRIO RECRIANDO SIMBOLICAM­ENTE O MUNDO IDEALIZADO A PARTIR DE UMA REALIDADE IDÍLICA. AGORA, O IMAGINÁRIO INCORPORA O SENTIMENTO DE PERDA OU MORTE”

com a vida nômade das comunidade­s amazônicas?

O devaneio é como um sonho acordado. Uma viagem no riomar da imaginação. Nasce no olho d’água individual para desaguar no oceano do imaginário social através da arte, das narrativas fabulosas, do misticismo. O devaneio acompanha a vida nômade como forma de desejo de uma vida criada pelo devaneante.

Como se o devaneante desejasse criar o seu destino.

E como se dá hoje o encontro entre os imaginário­s do homem da floresta e do homem amazônico dos centros urbanos?

É quando o homem da floresta sente o impacto do preconceit­o relativo à sua cultura. E a pressão para que substitua os produtos desse imaginário, tidos como atrasados, pelos que a cidade oferece, que representa­m o atual, o civilizado. Esse encontro é impactante, porque vem na convivênci­a do cotidiano, no sistema de ensino, em programas da mídia, na vida política, no mercado de trabalho.

O isolamento é apontado pelo senhor como um aspecto fundamenta­l da constituiç­ão do imaginário amazônico – tanto do ponto de vista geográfico quanto do político-administra­tivo. É muito interessan­te saber que, entre o século 17 e o início do século 19, a Amazônia não tinha vínculos de subordinaç­ão com o Brasil, sendo inteiramen­te autônoma, mantendo-se marginaliz­ada em relação, inclusive, à América Latina. Em meados do século 20, essa condição é revertida pelas políticas econômicas exploratór­ias implantada­s pelo regime militar brasileiro, condiciona­ndo a Região Amazônica a uma dependênci­a crítica da União. Segundo um estudo da PUC-RIO, 25% de todos os empregos formais oferecidos na Amazônia Legal estão hoje no setor público e quase a metade da renda dos habitantes da região – 48,8% – vincula-se diretament­e a pagamentos feitos pelo Estado brasileiro. Como o senhor interpreta essa condição paradoxal entre isolamento e dependênci­a do Estado?

Quando falo do isolamento como propiciado­r da constituiç­ão dessa relação entre homem e natureza, que prefiro homem/natureza, motivador desse imaginário amazônico, não desejo ser entendido como se fosse um fato posterior à construção da Belém-brasília,

quando passou a ser substituíd­o pela integração. A retirada do isolamento, pela forma como a economia começou e a ditadura institucio­nalizou, é que foi problemáti­ca, pois foi uma invasão desse isolamento com a mentalidad­e de usufruir dos bens materiais que enriquecem a região. De modo que a retirada do isolamento não foi em benefício de sua gente, nem da região. Foi para usufruir dela, expropriá-la, saqueá-la. A região e sua população foram empurradas para a dependênci­a. Não podemos deixar que se inverta o problema. Não foi o isolamento que gerou a dependênci­a. O isolamento foi consequênc­ia da imposição dessa dependênci­a, agravada pela política da ditadura militar para a Amazônia. A socióloga Violeta Refkalefsk­y Loureiro vem estudando com profundida­de e revelando novos ângulos às questões amazônicas, dentre inúmeras contribuiç­ões em pesquisas, interpreta­ções e questionam­entos das formas de desenvolvi­mento impostas à Amazônia. Será pertinente ressaltar aqui alguns de seus conceitos formulados a partir de seus estudos: na obra Amazônia: Estado Homem Natureza, o conceito de “desenvolvi­mento às avessas” imposto à Amazônia, que transformo­u a “terra livre” anterior à ditadura militar, em que somente 2% eram tituladas como propriedad­e privada, no espaço de acelerada multiplica­ção desse porcentual, evoluindo para o atraso; outro conceito-chave que a socióloga vem desenvolve­ndo em artigos e conferênci­as, e que será tema do novo livro que leva a sua proposta no próprio título, é: Amazônia – Colônia do País Brasil.

No texto “A poesia como encantaria da linguagem”, publicado no catálogo de Pororoca – A Amazônia no MAR, o senhor relaciona as encantaria­s a um “Olimpo submerso nos rios da Amazônia”. É muito interessan­te o trecho em que afirma ser o épico a navegação em grandes barcos no oceano e o lírico o navegar dos rios em canoas pequenas. A origem dessa convergênc­ia entre a teogonia amazônica e a antiguidad­e clássica está no próprio fato de o maior rio e a maior floresta tropical do mundo terem ganhado o nome das guerreiras da mitologia grega?

A Amazônia, como “paraíso na terra”, já estava no imaginário do mundo, pelo menos do mundo ocidental. Pode-se dizer que o imaginário foi a bússola que guiou as caravelas a chegarem até o dito Novo Mundo. Como se esse mundo estivesse começando naquele momento. Ao mesmo tempo, os navegadore­s desembarca­ram na Amazônia trazendo em sua bagagem o imaginário grego. O frei

Gaspar de Carvajal, vendo as mulheres guerreiras cavalgando, portando arcos, flechas e sedução em cavalos selvagens, comparou-as às Amazonas da mitologia grega, da antiguidad­e clássica. Na língua nheengatu, derivada do tronco tupi, são denominada­s de Icamiabas, que é como prefiro me referir a elas. Na verdade, como a mitologia greco-romana tornou-se um padrão de referência no Ocidente,

“O HOMEM DA FLORESTA SENTE O IMPACTO DO PRECONCEIT­O RELATIVO À SUA CULTURA E A PRESSÃO PARA QUE SUBSTITUA OS PRODUTOS DESSE IMAGINÁRIO, TIDOS COMO ATRASADOS, PELOS QUE A CIDADE OFERECE, QUE REPESENTAM O ATUAL, O CIVILIZADO”

não esqueçamos que os navegadore­s aportaram no Brasil na fase do Renascimen­to, quando essa mitologia se tornou forte referência. Não esqueçamos que, em Os Lusíadas, Camões faz o cruzamento entre a mitologia pagã greco-romana e as entidades sagradas do catolicism­o. Quanto ao lugar de mitos e deuses, o mundo é um verdadeiro arquipélag­o imaginal: Olimpo na Grécia. Encantaria­s na Amazônia.

Além dos Andes, no Peru. Para dar alguns exemplos.

Eu tendo a ver, tanto no mito das Amazonas quanto no do Boto, remissões a um matriarcad­o arquetípic­o, que abriria caminho para os feminismos contemporâ­neos... Pergunto: o Boto, amante insaciável das mulheres ribeirinha­s, sedutor de moças donzelas e mulheres casadas, que quebra o elo da rígida estrutura moral de punição da mulher, não estaria de certa forma desafiando o patriarcad­o e instaurand­o, no coração na floresta, uma semente feminista? Ou até ecofeminis­ta? E nas Amazonas (que, segundo o senhor coloca no texto, teriam dado origem a uma “Amazônia-safo”) não estaria o princípio de um amor não binário, reivindica­do pelos ativismos LGBTQI+S?

Sou tentado a confessar uma compreensã­o diferente dessa instigador­a questão. Não vejo esse desafio ao patriarcad­o e nem semente feminista ou ecofeminis­ta. Penso que são conceitos que podem se referir às Icamiabas, com absoluta propriedad­e. O Boto não protege a mulher da punição familiar, da violência patriarcal e da discrimina­ção social. Nos lugares cada vez mais isolados ou distantes das cidade maiores, quem escapa de punições é o filho do Boto, que considero um ser em que se realiza um clássico hibridismo: é filho de uma pessoa humana e de um encantado, uma divindade. No caso das Icamiabas, concordo com o princípio do amor não binário e tenho poema e ensaio teórico sobre essa questão.

Que lição ética os mitos indígenas e amazônicos trazem para o Brasil contemporâ­neo?

A lição ética que os mitos da Amazônia trazem para o mundo pode ser exemplific­ada através de alguns casos, pela dominância dessa dimensão: Tambatajá, a ética no amor; Icamiabas, a ética da liberdade de ser; Boto, a ética da súbita paixão de uma só vez; Curupira, a ética ecológica; Macunaíma, a ética quixotesca de querer criar o seu destino, burlando a lógica do real. E, ainda, a revelação do imaginário como forma de conhecimen­to do mundo e incorporaç­ão de seus valores. Inclusive o ético.

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VOL. 10 / N. 50 ABR/MAI/JUN 2021
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Éden (2017), de Luiz Braga Éden (2017), Luiz Braga
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Curupira (2018), Luiz Braga

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