ETNOBIOLOGIA
O QUE O BRASIL E A ETNOBIOLOGIA, NOVA DISCIPLINA LATINO-AMERICANA, TÊM A ENSINAR AO MUNDO SOBRE O ESTUDO DAS FLORESTAS
Disciplina supera a dicotomia entre natureza e cultura propondo abordagem etnogênica da floresta
O BOTÂNICO NORTE-AMERICANO RICHARD EVANS SCHULTES E O NATURALISTA BRITÂNICO RICHARD SPRUCE EXPLORARAM AS SELVAS DA AMÉRICA CENTRAL E DA AMÉRICA DO SUL ENTRE OS SÉCULOS 19 E 20, DEIXANDO INÚMERAS PUBLICAÇÕES QUE SERVEM ATÉ HOJE COMO REFERÊNCIA PARA DETERMINAR UMA HISTÓRIA BOTÂNICA DA FLORESTA AMAZÔNICA. Estudos recentes confirmam a hipótese desses pioneiros de que as florestas latinas são alteradas por humanos há pelo menos 11 mil anos – delimitando esse trajeto desde o México até a Amazônia continental, abrangendo Colômbia, Equador, Peru e Brasil. O que muda na visão atual é um novo e polêmico paradigma, que toma como entendimento a necessidade de uma abordagem da Floresta que seja mais etnogênica do que antropocêntrica, como as ciências biológicas e sociais determinaram durante séculos, no binômio selvagem e doméstico determinado por Teofrasto, discípulo de Aristóteles, há 2.300 anos. A visão etnogênica prepondera sobre outras perspectivas, graças a pesquisadores latino-americanos que vêm trabalhando de maneira transdisciplinar nos campos da arqueologia, antropologia, botânica, biologia e genética, em favor de uma relação não dicotômica entre o humano e a natureza. Esta foi a razão para o Simpósio Vozes Vegetais: Diversidade, Contradomesticação, Feminismos e História da Floresta, realizado na Unicamp em 2019, com o objetivo de fomentar a ideia de que não são somente os povos coletores e ribeirinhos que alteram a paisagem da Floresta e a filogenia de suas espécies, mas o contrário também acontece.
Há um afeto das plantas que modifica os humanos. “Esse debate nasceu na Academia, quando eu estava concluindo o meu doutorado a partir de 2017 e comecei a estudar o povo Banawá, com quem trabalhava há 20 anos, como indianista e antropólogo”, diz Miguel Aparicio Suárez, professor adjunto da Universidade do Oeste do Pará, que esteve em campo com as etnias Banawá e Suruwaha. “O professor norte-americano Charles Clement é um dos pioneiros nesse campo e resolveu montar um curso pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) fazendo um cruzamento entre biologia e antropologia, dedicado especialmente aos antropólogos, já que os biólogos sempre tiveram mais interesse nesse fenômeno”, diz à select. Aparicio estudou a relação interespécies entre
os índios Banawá e as castanheiras, as flecheiras (Gynerium Sagittatum) e o tabaco (Nicotiana Tabacum).
Foi por intermédio de Charles Clement, que é professor do Inpa, e de sua observação do cultivo da pupunha, que Aparicio descobriu as mudanças genéticas das plantas provocadas pelos povos tradicionais e como a pupunha alterou paisagens e demarcações à medida que foi “contradomesticada”. A descoberta é explorada por Miguel Aparicio em “Contradomesticação na Amazônia Indígena”, um dos 17 artigos que compõem o livro Vozes Vegetais (Ubu, 2021).
Clement tornou-se uma grande influência para o nascimento da etnobotânica praticada por Aparicio em suas pesquisas com os Banawá, na Bacia do Purus, rio que percorre o Peru e os estados do Acre e do Amazonas. “Esse povo vive dessas tecnologias há séculos. Eles poderiam ganhar mais dinheiro com as castanhas ou conseguir mais peixes com o veneno do timbó, mas, por estarem cada vez mais criminalizados em seus hábitos ou por terem seus territórios sujeitados à domesticação (manejadas pelo agronegócio), passaram a praticar o que chamo de botânica de precaução”, diz o professor. “As mulheres e os xamãs narram aquilo que eles consideram ‘caça em excesso de peixes’ ou a perseguição da entidade dona do igarapé após a pesca com timbó, atitudes que causaram inúmeras mortes.”
No artigo, Aparicio registra como a convivência com as castanheiras mowe (Bertholletia excelsa) marca de modo expressivo as trajetórias vegetais dos Banawá. Ele afirma que, além de serem imprescindíveis em sua dieta alimentar, as castanheiras, associadas à história de Mowewawa, o menino nascido de um ouriço de castanha, foram igualmente protagonistas na instauração de relações pacíficas com os extrativistas do interflúvio.