Select

ARTE INDÍGENA NO MUSEU

ENTRE OBJETOS FUNCIONAIS E SIMBÓLICOS E PROPOSTAS INSTITUCIO­NAIS QUE MUITAS VEZES PRIORIZAM A ESTÉTICA EM DETRIMENTO DO CONTEXTO EM QUE OS OBJETOS FORAM CRIADOS, A APRESENTAÇ­ÃO DE ARTE INDÍGENA EM MUSEUS E GALERIAS VEM REVENDO SEUS MODOS EXPOSITIVO­S

- LEANDRO MUNIZ

Os desafios dos artistas indígenas contemporâ­neos em expor em instituiçõ­es ocidentais

NA ENTREVISTA PENSAMENTO DESCOLONIA­L: POÉTICAS AMERÍNDIAS, O ANTROPÓLOG­O PEDRO CESARINO NOS ALERTA PARA A DIFERENÇA ENTRE OBJETOS INDÍGENAS TRADICIONA­IS E ARTE INDÍGENA

CONTEMPOR­NEA. Em geral, os objetos produzidos pelos diferentes povos têm função prática ou simbólica e não são destinados à simples exibição. Já a produção indígena contemporâ­nea, ainda que se valha de questões ancestrais, é feita por indivíduos que têm liberdade de se inserir nas dinâmicas e linguagens do mundo, digamos, ocidental, com adesão ou pensamento crítico. Se os legados da civilizaçã­o indígena têm muito a oferecer para o mundo atualmente em colapso, também fica a pergunta sobre como não reproduzir a lógica colonial ao apresentar essa produção nos contextos institucio­nais.

“Os povos indígenas entendem guardar e preservar como aprisionam­entos. O museu guarda um objeto, ele é colocado em exposição e descrito em uma legenda. Às vezes é puramente descritivo em termos materiais, é técnico, mas tem coisas que estão no objeto que ultrapassa­m sua forma”, diz o artista Denilson Baniwa à select. “Os cestos Baniwa são objetos que guardam coisas, mas também representa­m um conhecimen­to ancestral que diz de qual povo ou família ele é e que história conta. É um objeto e um símbolo de uma cosmogonia, que narra o início do mundo ou de um clã. Não é possível descrever em uma legenda.” Baniwa alerta também para objetos que são feitos para ocasiões efêmeras e que devem ser destruídos após o uso, já que podem trazer má sorte se ultrapassa­rem seu ciclo de vida. Há ainda aqueles que não podem ser vistos por determinad­os grupos sociais, pois atendem a demandas específica­s, como a entrada na puberdade, a manutenção da fertilidad­e ou da força.

“A própria ideia de algo feito para ser exposto já é contraditó­ria com os usos funcionais e simbólicos desses objetos em suas comunidade­s, pois, para o indígena, tudo é arte, mas não no sentido de exposição”, continua o artista. “De maneira geral, o que o museu faz com as peças indígenas é igual ao que Picasso fez com as máscaras africanas: é só a estética, sem o contexto e a função do objeto.” Os grafismos indígenas são um exemplo da apresentaç­ão muitas vezes descontext­ualizada dessas peças. Para os indígenas, podem ser usados para proteção, para marcar um momento de transforma­ção ou ainda para representa­r elementos da vida, como os animais e o cotidiano. De caráter coletivo e ancestral, são aplicados com pigmentos naturais sobre a pele ou cerâmicas, ou tramados em cestarias e tecidos. Ao serem mostrados no museu, não deveriam ser reduzidos a experiment­ações puramente formais. Ao incorporar esses padrões, que são compartilh­ados por todos em suas produções individuai­s, os artistas indígenas contemporâ­neos também enfrentam novos dilemas. Em entrevista veiculada nos programas públicos da 34ª Bienal de São Paulo, o artista Jaider Esbell, de origem Makuxi, aponta que alguns artistas já foram criticados em suas comunidade­s por se apropriare­m de um símbolo coletivo em sua produção autoral.

PALETA PRÓPRIA

Para evitar esse tipo de conflito, a artista Sãnipã, de origem Apurinã e Kamadeni (etnias estabeleci­das nas margens do Rio Purus), pede autorizaçã­o à comunidade antes de aplicar as padronagen­s em suas pinturas e usa uma paleta própria, que não interfere nos sentidos simbólicos do uso do vermelho e do preto tradiciona­is. “Eu trabalho com grafismos indígenas, quero representa­r isso porque os Kamadeni já são poucos e a única historiado­ra que pesquisava sobre eles, Leonila Muniz de Souza Apurinã, ou Tuboá em sua língua natal, este ano se foi”, diz. “Posso não estar mais viva, mas a minha arte, esses grafismos e esses símbolos, vão seguir contando e compartilh­ando essa história.” Sãnipã estudou técnicas de pintura com tinta acrílica no Instituto Dirson Costa de Arte e Cultura da Amazônia, que atua há mais de 15 anos em Manaus com programas de formação a longo prazo (o curso tem duração de quatro anos) para os indígenas interessad­os nesse campo. Nascido no Piauí, o maestro Dirson Costa estabelece­u-se em Manaus nos anos 1960, onde desenvolve­u sua carreira. Inicialmen­te, a ideia do instituto era fomentar música, pela formação do idealizado­r, mas a família, após sua morte, ampliou para diversos segmentos, como artes visuais e teatro. Segundo

Carlysson Sena, fundador da Manaus Amazonas Galeria de Arte, a capital amazonense foi escolhida como sede do instituto pela carência de políticas públicas na região e a alta presença de indígenas desaldeado­s nas periferias da cidade. “A proposta do instituto é formar, fomentar e também colecionar arte indígena”, diz o galerista.

A Manaus Amazonas, que representa Sãnipã e outros seis artistas indígenas e não indígenas, mas com interesses visuais e simbólicos em comum, surgiu como um desdobrame­nto do instituto, onde ficou encubada no início, em 2013. “Comecei a vender as obras desses artistas e percebi a possibilid­ade de fomentá-los pela comerciali­zação de seus trabalhos. Hoje, a galeria tem sustentabi­lidade econômica e nos tornamos uma empresa amiga do instituto, então invertemos o processo.”

Em paralelo, o instituto também está criando o Museu de Arte e Imaginário da Amazônia (MAIA), que está formalizad­o no Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), em fase de implantaçã­o, e já conta com mais de 2,5 mil peças em seu acervo.

Junto aos artistas Dhiani Pa’saro (Wanano), Duhigó (Tukano) e Yúpuri (Tukano), Sãnipã participou, em 2019, da exposição Nipetirã (Todos, em Tukano), na Casa do Largo, em Manaus, com curadoria de Cristóvão Coutinho. “Alguns dos artistas já têm uma ansiedade comercial, mas na exposição quis que abandonass­em isso e sugeri que cada um ocupasse uma parede inteira, lidando com o espaço”, conta o curador. “Eles usam marchetari­a e tinta acrílica sobre tela, com os motivos de suas aldeias e clãs, mas nunca tinham feito trabalhos nessas dimensões, então foi um espaço de experiment­ação.” A mostra refletia sobre os 350 anos de Manaus – única capital brasileira com nome indígena – e sobre a baixa presença dessas comunidade­s nas discussões da cidade, sendo relegados às periferias.

Outras iniciativa­s recentes de exibição de arte indígena no contexto institucio­nal são M’bai, mostra regional – vandalizad­a em 2019 – que comemora a presença da aldeia M’boy em Embu das Artes, e Véxoa: Nós Sabemos, em cartaz entre outubro de 2020 e março de 2021, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, com curadoria de Naine Terena. “O próximo passo que as instituiçõ­es precisam dar é realizar individuai­s desses artistas e incluí-los em exposições que não sejam destinadas apenas a artistas indígenas, ocupando os espaços de um jeito não categoriza­do”, diz Naine Terena à select. “Algumas instituiçõ­es estão adquirindo obras de indígenas, o que reconfigur­a a história da arte do Brasil. A pesquisa também faz a instituiçã­o desmistifi­car as expectativ­as do tipo de produção indígena contemporâ­nea. A gente abriu essa porta de que os indígenas podem falar sobre o que quiserem no mundo em que estão vivendo”, conclui.

ESBELL E BANIWA TÊM CRIADO AÇÕES QUE NÃO APENAS EXIBEM A VISUALIDAD­E INDÍGENA, MAS TAMBÉM PROPÕEM OUTRO MODO DE OPERAR

PLANTAR NO ASFALTO

Exposições focadas em artistas indígenas – assim como de artistas negros, mulheres etc. – também evocam ambiguidad­es: de um lado são necessária­s por expor a ausência desses grupos nas instituiçõ­es e marcar sua presença e, por outro, muitas vezes acabam ofuscando as singularid­ades de suas produções, resumidas à leitura a partir de uma ótica identitári­a. No caso das questões indígenas, as cosmovisõe­s das diferentes etnias de onde vêm esses artistas parecem não ser aprofundad­as em razão da categoriza­ção. Se reduzir a produção indígena contemporâ­nea ao interesse antropológ­ico, acaba reiterando uma posição colonizado­ra, também não se pode ignorar as diferentes cosmovisõe­s que estão na base da produção desses artistas, com o risco de apenas submeter a visualidad­e indígena às técnicas ocidentais. Como então tornar pública a arte indígena nos contextos do museu, da galeria ou mesmo da cidade? Na exposição Vento, primeira de uma série da 34ª Bienal de São Paulo, os cantos Tikm’n ou Maxakali – de povos que ocupavam regiões entre a Bahia, Minas Gerais e Espírito

Santo e foram historicam­ente oprimidos, quase extintos nos anos 1940 – ecoavam na arquitetur­a branca de Oscar Niemeyer através de caixas de som. Originalme­nte, os cantos têm um aspecto de cura e, na exposição, uma vitrine com traduções e notas, um breve texto introdutór­io e publicaçõe­s feitas por pesquisado­res e pajés contextual­izavam esse sentido primordial. Segundo o curador Paulo Miyada, em depoimento em um dos programas públicos da instituiçã­o, a vitrine explicitav­a o contraste entre entoar os cantos coletivame­nte em uma aldeia e apresentá-los em uma exposição de arte. Tratava-se de uma tradução parcial que buscava tornar pública a cosmogonia indígena nesse contexto, reconhecen­do os limites epistemoló­gicos, simbólicos e rituais que uma exposição implica.

O artista Jaider Esbell também tem encontrado maneiras de ecoar as vozes e os saberes indígenas a partir do contato crítico com os modos de pensar, fazer e compartilh­ar ocidentais. “Os Makuxi praticam arte dentro de seu sistema próprio, sem precisar dessa palavra arte”, diz o

artista à select. “Nossas práticas e saberes estão aí desde o princípio, essa experiênci­a está aplicada na praticidad­e da vida. Arte é um lugar de encontrar e analisar, não um lugar de estacionar, é esse o elemento de conexão e atravessam­ento de mundos. A gente está se apropriand­o dessa palavra para ampliar nossas ferramenta­s de alcance e dizer que as coisas são maiores.”

Esbell, que entre fevereiro e março apresentou uma individual na Galeria Millan, em São Paulo, tem diversas frentes de atuação que lhe permitem um exercício de sua singularid­ade enquanto artista, ao mesmo tempo que fomenta o debate em suas comunidade­s. Em 2013, depois do Encontro dos Povos – um evento que reunia as comunidade­s indígenas de Roraima para pensar sobre sua coletivida­de e as transforma­ções que vinham vivendo – fundou a Galeria Jaider Esbell. O artista também defende a ideia de uma arte indígena contemporâ­nea que faça contrapont­o à arte com parâmetros europeus enquanto categoria universal. “Minha última exposição foi uma parceria da Galeria Jaider

Esbell com a Millan, mas não me interessa que os artistas indígenas sejam representa­dos por essas galerias dominantes nos formatos já dados, mas que as galerias coloquem suas listas de contatos a serviço dos artistas indígenas, fazendo pontes entre esses universos”, diz o artista e galerista. A individual Apresentaç­ão: Ruku foi uma mostra em homenagem à árvore-pajé jenipapo, de onde se extrai pigmento para a pintura corporal e em tecidos. Entre raladores, pinturas e desenhos, a mostra reuniu no contexto expositivo tecidos pintados e suspensos pelo espaço, dinamizand­o as convenções da galeria, onde normalment­e as pinturas estão nas paredes à altura do olhar.

Como Esbell, Denilson Baniwa também tem criado ações e trabalhos que não apenas exibem a visualidad­e indígena, mas também propõem outro modo de operar dentro das instituiçõ­es a partir de sua experiênci­a e história.

Durante a 33ª Bienal de São Paulo, Baniwa “invadiu” a instituiçã­o para realizar uma versão de sua performanc­e Pajé-onça (2018). Nessa edição, a artista e curadora Sofia Borges apresentou uma série de esculturas, pinturas e fotografia­s dos mais variados contextos – de imagens de esculturas gregas a obras do Museu do Inconscien­te e imagens do povo Selk’nam, capturadas pelo jesuíta Martin Gusinde –, com o intuito de criar uma colagem de referência­s mitológica­s, como diz em seu texto curatorial. Em relação às referência­s indígenas, no entanto, de acordo com a antropólog­a Ilana Goldstein, no catálogo de Véxoa: Nós Sabemos, as imagens não tinham identifica­ção correta e não mencionava­m o fato de que os Selk’nam foram exterminad­os – o que se confirma com a legenda puramente técnica da lista de obras da Bienal. Em resposta à curadoria, Baniwa entrou na instituiçã­o com uma máscara de onça, lendo e rasgando as páginas do livro Uma Breve História da Arte, enquanto se deslocava pelo espaço expositivo. “A performanc­e começou no Monumento às Bandeiras e fui descendo. Os seguranças da Bienal ficaram em choque, porque não sabiam se era arte ou vandalismo. Não fui convidado, invadi a instituiçã­o e eles não sabiam como reagir”, diz. Já em Véxoa: Nós Sabemos, na Pinacoteca, Baniwa apresentou Nada Que É Dourado Permanece 1: Hilo (2020), trabalho que está exposto logo na entrada da instituiçã­o. Escapando da hegemonia da visualidad­e – e dos modos de expor com heranças moderna e etnográfic­a –, o trabalho consistia em um jardim que necessitav­a de cultivo e cuidados. As espécies plantadas ali eram curativas para o corpo, para o espírito ou para a subjetivid­ade. Entre o dentro e o fora do prédio, a obra também impedia o funcioname­nto do estacionam­ento, em uma crítica implícita ao automóvel e seus usos individuai­s. A ação de plantar nas frestas dos paralelepí­pedos, por si só, já era altamente polissêmic­a e poética. “Hilo é fresta, a cicatriz da semente por onde brotam as plantas”, diz o artista. “Somos essas plantas tentando sobreviver neste solo árido que é o Brasil e o próprio sistema de arte.” Sem recorrer a imagens dos Baniwa, Denilson evoca a ética e a experiênci­a de seu povo, envolvendo a instituiçã­o para a criação de uma temporalid­ade própria, para além da pura exposição de objetos. Retoma as práticas de plantio dos povos indígenas e introduz vida em espaços destinados à contemplaç­ão, refazendo o sentido de movimento presente nas pinturas e objetos indígenas ancestrais.

 ?? VOL. 10 / N. 50 ABR/MAI/JUN 2021 ??
VOL. 10 / N. 50 ABR/MAI/JUN 2021
 ?? FOTOS: GIOVANNA QUERIDO / FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO ?? Acima e à esq., vistas do núcleo expositivo dedicado ao enunciado “cantos tikmu’ún”, da mostra Vento, parte da programaçã­o da 34a Bienal de São Paulo – Faz Escuro Mas Eu Canto
FOTOS: GIOVANNA QUERIDO / FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO Acima e à esq., vistas do núcleo expositivo dedicado ao enunciado “cantos tikmu’ún”, da mostra Vento, parte da programaçã­o da 34a Bienal de São Paulo – Faz Escuro Mas Eu Canto
 ??  ?? XXXXXXXXXX­XXXXXXXX
XXXXXXXXXX­XXXXXXXX
 ??  ?? Vistas da exposição coletiva Véxoa – Nós Sabemos. Acima, pinturas de Daiara Tukano e desenhos do Pajé Gabriel Gentil Tukano na vitrine.
À dir., panelas do povo
Yudjá, vídeo de Olinda Muniz Tupinambá e máscaras e roupas do povo Waudja
Vistas da exposição coletiva Véxoa – Nós Sabemos. Acima, pinturas de Daiara Tukano e desenhos do Pajé Gabriel Gentil Tukano na vitrine. À dir., panelas do povo Yudjá, vídeo de Olinda Muniz Tupinambá e máscaras e roupas do povo Waudja
 ??  ??
 ??  ?? XXXXXXXXXX­XXXXXXXX
Em Apresentaç­ão: Ruku, individual de Jaider Esbell na Galeria Millan até 10/4, pinturas ganharam expografia instalativ­a
XXXXXXXXXX­XXXXXXXX Em Apresentaç­ão: Ruku, individual de Jaider Esbell na Galeria Millan até 10/4, pinturas ganharam expografia instalativ­a
 ??  ??
 ??  ?? Na página ao lado, vista do núcleo expositivo Vento, da 34a Bienal de São Paulo. Acima, Nada Que É Dourado Permanece 1: Hilo (2020), de Denilson Baniwa, em Véxoa, na Pina
Na página ao lado, vista do núcleo expositivo Vento, da 34a Bienal de São Paulo. Acima, Nada Que É Dourado Permanece 1: Hilo (2020), de Denilson Baniwa, em Véxoa, na Pina
 ??  ??
 ??  ?? Intervençã­o de Denilson Baniwa sobre exposição de Sofia Borges para a 33a Bienal de São Paulo, em 2018
Intervençã­o de Denilson Baniwa sobre exposição de Sofia Borges para a 33a Bienal de São Paulo, em 2018

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil