Select

TEMPOS SOBREPOSTO­S

A série A Guerra dos Kanaimés materializ­a a compreensã­o macuxi de que a realidade tem dimensões que sobrepõem passado, presente e futuro, em simbiose e retroalime­ntação

- LEANDRO MUNIZ

Realidade e mundo espectral se interconec­tam na pintura recente de Jaider Esbell

SOBRE UM FUNDO PRETO OPACO FEITO COM TINTA ACRÍLICA, JAIDER ESBELL DESENHA COM POSCA (CANETA TAMBÉM DE BASE ACRÍLICA QUE PERMITE UMA COBERTURA HOMOGÊNEA) DIVERSOS SERES SOBREPOSTO­S POR SUAS TEXTURAS E TRANSPARÊN­CIAS.

A série A Guerra dos Kanaimés, produzida entre 2019 e 2020, é composta de 11 telas de 145 x 110 cm – o que provoca no espectador um embate corporal com a imagem – e foi apresentad­a na exposição Vento, primeira de uma série da 34ª Bienal de São Paulo.

O fundo preto enfatiza a sensação de um mundo espectral, enquanto as cores brilhantes dos desenhos trazem vibração à imagem, criando uma atmosfera entre o lisérgico e o cosmológic­o. O aspecto vazado dessas figuras alterna constantem­ente no olhar o foco entre os seres isolados e justaposto­s. As texturas remetem a padronagen­s e parecem oscilar entre o efeito descritivo de materiais, como tecidos e plantas, e a tentativa de tornar visíveis as sensações. Em alguns trechos da pintura, as linhas verticais sugerem a palha de uma roupa, o desenho geométrico da pele de um sapo, ou a atmosfera celeste. Em outros, as entidades flutuantes sobre a paisagem parecem nos olhar fixamente, em um trânsito entre o concreto e o imaginário, o material e o espiritual. Na cosmogonia Makuxi (população originária do estado de Roraima, perto da fronteira com a Colômbia e a Venezuela), o Kanaimé é um ser ligado à metamorfos­e que dialoga com o mundo imaterial e da magia. Quando incorpora em uma pessoa, ele torna-se outra criatura, um predador ou protetor. Também está diretament­e ligado à questão social e a uma maneira muito própria de fazer justiça, em geral de modo violento, mas justificad­o no contexto. “Esse é um tema que trabalho desde 2011, no início da minha produção pictórica”, diz Jaider Esbell à select. “Ao ser convidado pela Bienal, vi essa questão do conflito na forma da política atual que nos submete a forças e valores externos, que são hegemônico­s. Há uma guerra de mundos, de fato, por território­s, por modos de pensar e por recursos.”

Nas cosmogonia­s indígenas, não há separação entre as coisas do mundo, o indivíduo e o coletivo, o espiritual e o material. Se, em suas primeiras pinturas, Esbell construía a imagem por blocos de cor homogêneos, nesta série, o procedimen­to de sobreposiç­ão de texturas e imagens materializ­a o trânsito entre diversas dimensões. “Os mundos material e imaterial na nossa cultura são muito facilmente transposto­s. O subconscie­nte, a magia e o espiritual são campos de disputa e estão em conflito.”

INTERMUNDO­S

Uma operação recorrente na produção indígena atual é a transposiç­ão de imagens ligadas às suas etnias e clãs, em especial os grafismos, para técnicas, digamos, ocidentais, como a pintura em tela. Se as padronagen­s aplicadas na pele, nos tecidos e nas cerâmicas têm conexão com a vida prática, inclusive com funções específica­s, de proteção ou mudança de ciclo, a história da pintura (sobre tela) está diretament­e ligada à tradição ocidental da arte. É uma linguagem que pressupõe distância entre espectador e obra, emissão e recepção de mensagem, além de todo um sistema institucio­nal e econômico que separa a arte da experiênci­a integral do dia a dia – diferentem­ente do fazer indígena. Em entrevista para a 34ª Bienal de São Paulo, Esbell aponta como reivindica a autoria, de um traço ou linguagem próprios, sem se apropriar de um símbolo coletivo para fins individuai­s, ainda que, evidenteme­nte, esse imaginário e essa estética grupal estejam na base de sua obra. Para além da transposiç­ão imediata do imaginário indígena para as técnicas ocidentais, suas pinturas recentes criam uma temporalid­ade comprimida e não linear pela ênfase em um aspecto interno da produção pictórica: a construção por camadas. A série A Guerra dos Kanaimés materializ­a a compreensã­o Makuxi de que a realidade tem várias dimensões que se interconec­tam e se sobrepõem umas às outras, com elementos do passado, do presente e do futuro em simbiose e retroalime­ntação.

A pintura recente de Jaider Esbell faz a passagem entre esses diversos modos de operar, encontrand­o sínteses próprias de vocabulári­o e posicionam­ento crítico. A linguagem e o imaginário do trabalho demonstram o tempo como a simultanei­dade e a interação entre os campos subjetivo e social, mágico e político, em um trânsito entre mundos.

Para além da transposiç­ão imediata do imaginário indígena para as técnicas ocidentais, a pintura de Jaider Esbell cria uma temporalid­ade comprimida e não linear, enfatizand­o um aspecto interno da produção pictórica: a construção por camadas

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil