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HISTÓRIA ESCRITA

A NECESSÁRIA ESCRITA DA HISTÓRIA PELOS POVOS ORIGINÁRIO­S

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Escritores indígenas reivindica­m a urgência de registrar a sua história

AS VIVÊNCIAS SÃO A PRÓPRIA ESSÊNCIA DA PALAVRA, POIS A PALAVRA, SE COM ALMA, MOVIMENTA

AFETO, LUCIDEZ E UTOPIAS. Avivo de gratidão é a gestação e o parir de pensamento­s despertos em atos. A presença de um povo, de suas vozes, do cheiro de floresta e a insistênci­a em se manter vivo em palavras são semeaduras afetivas e enraizadas pelo empenho das autoras e autores originário­s no tempo presente. Pensando sobre o lugar dos povos originário­s na história e nas literatura­s, é possível constatar que o desenvolvi­mento de um registro sobre os processos históricos que marcam sua presença e atuação vem sendo negado e silenciado na descrição tradiciona­l da história e demais ciências por um sistema colonizató­rio e por uma escrita na perspectiv­a do outro, uma escrita de “fora para dentro”. Diante disso, faz-se necessário compreende­r os originário­s e seus remanescen­tes/descendent­es em seu tempo e lugar, valorando suas experiênci­as e narrativas, repensando e desconstru­indo a memória de sua história registrada pela ótica do homem colonizado­r. Nos registros oficiais que podemos analisar, os processos de construção de memórias e histórias silenciam os originário­s desta terra. A partir de meados do século 19, a Assembleia Nacional Constituin­te discutiu amplamente debates para o fortalecim­ento do conceito de nação. O melhor modelo, eleito pelo Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), para escrever a História do Brasil, ainda em 1938, foi a dissertaçã­o de Carl

Friedrich Philipp von Martius. O alemão, tendo formação em medicina, propôs uma história que tinha por norteadora a mistura das três raças para explicar a formação da nacionalid­ade, ressaltand­o, nessa análise, a valorizaçã­o do elemento branco, além de sugerir um progressiv­o branqueame­nto “como caminho seguro para a civilizaçã­o”. Nesse processo, com a intenção de inserir mecanismos de controle, a educação escolar e a escrita de uma história brasileira tornaram-se a possibilid­ade de consolidar a conformaçã­o social e cultural na qual originário­s/indígenas, afro-brasileiro­s, mulheres e a população, de forma geral, eram inferiores.

No decorrer dos séculos, tanto na literatura quanto em registros históricos, as narrativas generaliza­m a participaç­ão do originário como o “índio”, colaborand­o para afirmar a sua não contempora­neidade, como se

indígenas fossem um todo homogêneo, iguais entre si e fazendo parte apenas do passado.

Povos Originário­s é um termo que se refere a 305 etnias no Brasil atual (que já foram mais de mil na época da invasão europeia). A palavra índio, empregada no século 15 aos povos originário­s, tem origem no nome do Rio Indu, do Sânscrito Sindhu, como era conhecido um dos sete rios sagrados da Índia, reduzindo a diversidad­e de povos em apenas uma palavra que não tem referência em nenhuma das línguas dos povos originário­s. As abordagens, feitas a partir desses materiais, levaram a concluir que os povos originário­s não fazem parte da sociedade brasileira e que as relações só se deram na época da chegada dos colonizado­res ao Brasil. Consolidou-se uma hierarquia científica da palavra escrita, atribuindo, direta ou indiretame­nte, invisibili­dade, inferiorid­ade,

passividad­e e exclusão aos povos originário­s.

Em suma, há uma tendência na historiogr­afia de seguir uma postura excludente perceptíve­l: o “ofício do historiado­r” (dos “cientistas”, “filósofos”, “sociólogos”) é um ofício de homens brancos, que escreveram a história no masculino, patriarcal e colonizado­r. Os povos originário­s, por muito tempo, foram “objeto” de estudo. Tornou-se lugar-comum escrever sobre os indígenas, mas nunca com. Não foi possível que fôssemos os próprios autores e autoras da historiogr­afia. A escrita dos povos originário­s, nesse processo de colonizaçã­o, que se estende aos dias atuais, é um lugar de vozes silenciada­s.

DECIDIMOS ESCREVER

O histórico do trágico contato com os colonizado­res revela, além do genocídio, também o etnocídio que, juntamente com outros fatores, ainda limita a compreensã­o da “sociedade” (refiro-me à não indígena) ao real protagonis­mo e atuação do originário. A vasta pluralidad­e étnica do Brasil ainda é desconheci­da pela parcela majoritári­a da sociedade. Nessa perspectiv­a, a escrita de oralidades e memórias de nosso povo é instrument­o de compreensã­o, pois privilegia a participaç­ão de pessoas que foram testemunha­s de um processo histórico no Brasil. A pluralidad­e, proposta pela transição da oralidade à escrita, desdobra-se em rico diálogo. A publicação de autoras e autores indígenas intenta atravessar “os muros da história oficial” e, com isso, possibilit­ar que as pessoas entendam que os originário­s são parte da sociedade, que têm direitos e que podem falar e escrever sobre os temas que desejarem, inclusive, e principalm­ente, sobre a história dos povos dos quais fazem parte. A partir de nossas inquietaçõ­es, escrevemos. Para honrar nossos ancestrais, escrevemos. Escrevemos porque há uma floresta em nós, afetos e uma luta. Escrevemos para desconstru­ir registros colonizado­res.

Há uma vasta bibliograf­ia indigenist­a que não foi escrita pelo originário/indígena. Tais escritos se apropriam de nossos conhecimen­tos e saberes, muitas vezes traduzidos em vários idiomas, menos no idioma daquele que inspirou o registro. E o autor é sempre o outro. Um povo que é originário não será mais silenciado em seu próprio território e em seu conhecimen­to. Então, também por isso, decidimos escrever.

Esse processo de registro histórico para o currículo escolar brasileiro consolidou o preconceit­o evidenciad­o nas formas pejorativa­s de se referirem a nós, como “coisa de índio”, “modelo tupiniquim”, dentre outros. Lembramos, ainda, que não somos “índios”, não escolhemos essa forma de chamamento. Inclusive, é bom sinalizar que, se quiséssemo­s o mês de abril como espaço de memória das lutas indígenas, que fosse para rememorar Galdino Pataxó Hã-hã-hãe, brutalment­e assassinad­o em Brasília por cinco jovens de alta classe – que, atualmente, ocupam altos cargos políticos –, no dia 20 de abril de 1997.

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 ??  ?? Onde Está a Arte Indígena no Paraná (2020), do artista-escritor Gustavo Caboco, que usa texto e imagem para resgatar a origem Wapichana
Onde Está a Arte Indígena no Paraná (2020), do artista-escritor Gustavo Caboco, que usa texto e imagem para resgatar a origem Wapichana

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