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A VIRTUALIDA­DE HUMANA NA FORMA ANIMAL

Claudia Andujar propõe a interpreta­ção imagética dos Sonhos Yanomami, em uma das mais recentes séries de manipulaçã­o de seu acervo fotográfic­o

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Disse certa vez Claudia Andujar, em entrevista, que Sonhos Yanomami (2002) constituiu um ponto de virada em sua experiênci­a com os Yanomâmi. O grau de “interpreta­ção imagética” alcançada por essa série de 20 fotomontag­ens de fato parece chegar muito perto dos tecidos sensíveis do sonho, do delírio, da doença ou do transe. Na fatura resultante das sobreposiç­ões de cromos e negativos revela-se muito daquilo que Andujar diz presenciar nos processos ritualísti­cos Yanomâmi: a dissolução de fronteiras entre os seres humanos, seus deuses e a natureza, e a integração de tudo em um fluxo contínuo. Sonhos Yanomami é um dos mais recentes trabalhos de manipulaçã­o e reprocessa­mento da fotógrafa sobre seu monumental acervo de imagens, construído desde 1971. Aqui, as sobreposiç­ões técnicas não são um artifício de pós-produção ou de experiment­ação de linguagem, mas têm correspond­ência conceitual direta com a sobreposiç­ão de mundos das cosmovisõe­s indígenas.

Contam os tradutores de mundos – entre eles artistas e antropólog­os como Andujar e Eduardo Viveiros de Castro – que nas metafísica­s ameríndias não há distinção entre sociedade e meio ambiente. O argumento de Viveiros de Castro, no premonitór­io Há Mundos Por Vir? Ensaio Sobre os Medos e os Fins (2015), de que “não humanos são ex-humanos que preservam um lado humano latente ou secreto, imperceptí­vel para nós em condições normais”, ganha perfeita manifestaç­ão visual em Sonhos Yanomami.

Após décadas de convivênci­a e ativismo pela causa indígena, Andujar aprendeu o suficiente para propor interpreta­ções aos seus sonhos. No trabalho, ela mostra que, diferentem­ente dos brancos, que “dormem muito, mas só sonham consigo mesmos”, como Davi Kopenawa aponta em A Queda do Céu (2015), os Yanomâmi sonham com as existência­s humana e “ex-humana”. A série é, portanto, composta de representa­ções individuai­s ou coletivas, humanas ou ex-humanas (na forma de coruja, garça, macaco etc.), sobreposta­s a paisagens e elementos como água, terra, pedra e céu, dando forma ao que no ensaio sobre os medos e os fins se define como a “virtualida­de humana na forma animal”. PA

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Sonhos Yanomami, Claudia Andujar, Até 3/7, Galeria Vermelho, Rua Minas Gerais, 350 São Paulo
Desabament­o do céu / O fim do mundo, da série Sonhos Yanomami (2002) Sonhos Yanomami, Claudia Andujar, Até 3/7, Galeria Vermelho, Rua Minas Gerais, 350 São Paulo
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FOTO: CORTESIA DA ARTISTA E GALERIA VERMELHO

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