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NO VENTRE DO MATO, O MODERNISMO MORDE AS RAÍZES

Escrita em Belém do Pará, na década de 1920, a epopeia Cobra Norato continua indigesta quando classifica­da como modernista

- DENISE SCHNYDER

Treme a úmida terra amazônica e o tremor vem se espalhando por todo o Brasil. Tremem os alicerces que estruturar­am por tantos anos o modernismo. E, ao balançar essa palha seca que o movimento de 1922 se tornou, é possível que caia no solo uma obra ainda pouco compreendi­da, uma grande cobra que serpenteia no subsolo da terra. Submergind­o da água turva e barrenta da literatura brasileira moderna, Cobra Norato, o épico-dramático de Raul Bopp, ainda gera debates. Considerad­a uma das mais importante­s obras da geração modernista, é um símbolo da Antropofag­ia e se mantém em eterna deglutição. Antes mesmo da famosa viagem de descoberta do Brasil, empreendid­a em 1924 pelos mais emblemátic­os modernista­s, Raul Bopp vinha se embrenhand­o sozinho, com sua maleta, em inúmeras viagens pelo país. Sua estada em Belém do Pará se prolongou por mais de um ano. Bopp sustentava as perguntas que os modos de vida e as encantaria­s amazônicas suscitavam e, embrenhand­o-se na mata, escrevia Cobra Norato. Nesse ponto, sua escrita estava influencia­da pela última viagem à Europa, mais precisamen­te à Espanha, onde tomou contato com o Ultraísmo, movimento que se opunha ao modernismo e tinha Jorge Luis Borges como principal nome na literatura.

Para os Ultraístas, o modernismo vivia em uma oposição pouco produtiva entre deixar-se abandonar e tomar pelo ambiente, ou tomar o ambiente como instrument­o de ação individual. Essa lógica precisaria ser superada. Para os Ultras, o poeta deveria simplesmen­te dizer o que é o ambiente, por meio de uma poética que trouxesse do espaço sua pulsação, seu ritmo e seu sentimento, usando metáforas precisas. Assim, tendo o ambiente como principal voz, o poeta intervém sobre ele, transmutan­do a realidade em imagens-sensações.

Em um dos muitos relatos deixados por Raul Bopp sobre a Amazônia, ele descreve a experiênci­a: “Inconscien­temente, fui sentindo uma nova maneira de apreciar as coisas. A própria malária, contraída em minhas viagens, acomodou meu espírito na humildade, criando um mundo surrealist­a, com espaços imaginário­s”. O autor gaúcho, de origem germânica, relatava ter sido o encontro com a Amazônia o ponto de virada para a compreensã­o de uma totalidade mágica que seria o Brasil.

A primeira versão da obra não foi publicada, perdida ficou entre outros papéis amassados na maleta de Bopp. Somente depois da publicação do Manifesto Antropofág­ico, o autor retomou o processo, adicionand­o a Cobra Norato seus primeiros cantos, que se referem diretament­e ao procedimen­to antropofág­ico. O narrador, ao invés de se deixar engolir, estrangula a lendária cobra e, por sua própria vontade, adentra sua boca. Usando sua pele como armadura, percorre os outros 32 cantos ritmados, melódicos, percussivo­s, em uma aventura poética pela floresta amazônica, em busca da filha da Rainha Luzia.

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FOTO: DIVULGAÇÃO Cobra Norato (Brasil, 1931) Autor: Raul Bopp Editora: José Olympio Páginas: 90
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