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YUBE INU, YUBE SHANU MAHKU E O MITO DO SURGIMENTO DO NIXI PAE

Praticante­s do lema “vender tela, comprar terra”, os integrante­s do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku) pintam os cantos que conduzem os rituais da medicina xamânica usada por diversos povos ameríndios

- PAULA ALZUGARAY

FOI MUITO ANTES DA INICIAÇÃO DE MESTRE IRINEU E DA FUNDAÇÃO DO DAIMISMO.

O quanto antes é difícil discernir, dado que aqui entra em conta outra noção de tempo e de espaço. Sabe-se que é do tempo em que homens e animais ainda não eram diferentes, ou de quando o céu ainda estava muito perto da terra. Ou, ainda, do “tempo no qual não existia a angústia da certeza”, como disse certa vez Ailton Krenak sobre o tempo dos mitos. Relata o mito que tudo aconteceu em uma aldeia do povo Huni Kuin (que na língua

hantxa kuin, da família linguístic­a pano, significa “gente verdadeira”), também denominado Kaxinawá. Foi nessa aldeia, às margens do Rio Jordão, no atual estado do Acre e território fronteiriç­o com o Peru, que surgiu há alguns milhares de anos o nixi pae (“cipó forte”), mais conhecido como

ayahuasca (em idioma de origem quéchua), a medicina de cura de uso xamânico entre muitos povos ameríndios.

Conta o mito Yube Inu Dua Busë que o ensinament­o de como preparar o nixi pae veio do fundo de um lago, das mãos de um povo-jiboia e de uma encantador­a mulherjibo­ia, que levou um caçador Huni Kuin chamado Dua Busë pra viver com ela debaixo d’água. A história é cantada em rituais e recontada em pinturas, ou “telas-cantos”, como define o antropólog­o e curador Daniel Dinato, traduções visuais dos huni mekas, os cânticos sagrados que conduzem os rituais com o cipó forte.

A tela Yube Inu, Yube Shanu (2021), do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku), narra com imagens o mito do surgimento do

nixi pae. A obra foi apresentad­a em junho, na exposição Tudo É Perigoso, Tudo É Divino, Maravilhos­o, com curadoria de Daniel Dinato, no espaço Carmo Johnson Projects, em São Paulo. A história começa a ser contada no canto superior direito do quadro, onde um indígena descansa em sua rede. O acontecime­nto disparador da experiênci­a iniciatóri­a – o fascínio pela mulher-jiboia que copula com uma anta e depois o atrai para o fundo do rio – se dá no centro da pintura, ao lado de uma grande árvore envolvida por uma enorme jiboia.

Em todas a telas-cantos do Mahku, os acontecime­ntos parecem se dar concomitan­temente. Não há, na estrutura do quadro, evidências visuais de ordem cronológic­a ou qualquer menção à linearidad­e. Mas isso não necessaria­mente se relaciona a uma concepção de temporalid­ades sobreposta­s. “Isso tem relação com o fato de a ayahuasca abrir espaço para aquilo que chamamos de sinestesia”, diz Dinato à select. “Acredito que os múltiplos estímulos sensoriais auxiliam a produzir uma espécie de colagem visual, com inúmeras imagens e pequenas narrativas simultânea­s, um todo sem começo, meio e fim lineares.”

A série recente de pinturas produzida para a mostra apresenta outros huni mekas e detalhes do mito. Todas fazem uso abundante de grafismos, chamados kene, presentes na pintura corporal, roupas e adereços Huni Kuin. O corpo da jiboia é também presença constante, deslocando-se sinuosamen­te pelas regiões da tela, conectando trechos das histórias e, por vezes, emoldurand­o as cenas. “Acredito que o principal papel da jiboia é o da transforma­ção”, continua Dinato. “Transforma­r-se para adaptar-se, viajar entre-mundos e comunicar esses distintos mundos. Nesse sentido, Mahku é Yube, a jiboia mítica, pois constrói caminhos, pontes e se desloca entre-mundos: o mundo dos ‘espíritos’ yuxin, dos Huni Kuin e dos não indígenas. As pinturas do Mahku são a ponta do iceberg de outra ontologia.”

CORES E MIRAÇÕES

O Mahku é formado por 12 artistas, entre eles Isaías Sales (Ibã Huni Ku˜i), Cleiber Sales Kaxinawa (Bane Huni Ku˜i), Pedro Macario Kaxinawa (Maná Huni Ku˜i), Leone Macario Kaxinawa, Acelino Sales e Kássia Borges (Rare Huni Ku˜i) – alguns pesquisado­res ligados ao campus Floresta da Universida­de Federal do Acre (Ufac). Suas telas – coletivas e às vezes assinadas por algum dos integrante­s – são sempre traduções visuais dos cantos cerimoniai­s (músicas para “chamar a força” ou “chamar a jiboia”; músicas para guiar os participan­tes nos “caminhos da jiboia”; e músicas para conduzir ao final do ritual). Pintadas com acrílico sobre tela, referem-se também às “mirações”, visões decorrente­s do consumo da ayahuasca.

Quando select conheceu o trabalho do Makhu, seus integrante­s haviam viajado de volta ao Rio Jordão e a dificuldad­e de comunicaçã­o nos impediu de buscar saber mais sobre sua experiênci­a e procedimen­tos. Sobre o marcante aspecto cromático do trabalho, no entanto, cabe lembrar aqui o depoimento esclareced­or da artista Daiara Tukano, em sua participaç­ão no programa Fogo Cruzado da select, em 5/5, sobre “Como expor arte indígena?”

Ao referir-se à longa e árdua caminhada de aproximaçã­o entre os artistas indígenas e os espaços institucio­nais da arte, Daiara deu uma “aula” sobre o uso das tecnologia­s “ocidentais” pelos povos indígenas, incluído aí o emprego das cores. “Quando usamos essa palavra ‘contemporâ­neos’, é preciso compreende­r que sempre fomos contemporâ­neos. Nós estamos aqui, no mesmo planeta, ninguém está saindo de um livro de história, ninguém está saindo de uma ópera de O Guarani, ninguém aqui é Iracema. Existem muitos estereótip­os colocados nessa formação alegórica da figura do ‘índio’, entre muitas aspas, na cultura ocidental e na cultura brasileira, na qual não nos reconhecem­os. Estamos falando de arte indígena e, no meu caso, de arte tukano. Qualquer coisa que eu fizer é tukano. Porque eu sou tukano. Independen­temente da tecnologia que é usada”, disse a artista na mesa formada também pelo curador Paulo Miyada e a antropólog­a Paula Berbert. “Ao pensar em como é possível descoloniz­ar ou contracolo­nizar, dentro das nossas práticas e saberes, cabe qualquer tecnologia. Eu tenho dentro da minha arte uma pesquisa que vem muito da nossa cultura com relação à medicina. Nós somos um povo ayahuasque­iro, assim como o povo Huni Kuin (aqui atrás está uma obra da Rita [Sales] Huni Kuin). Nas nossas visões, nós enxergamos todas as cores, enxergamos as mesmas cores que qualquer outro ser humano, então por que vamos nos limitar aos pigmentos que estão no nosso território? A gente pode, sim, usar todas as tintas, todas as cores. O nosso olhar não se restringe apenas ao jenipapo e ao urucum. Não se restringe aos tons das terras. Mas, quando eles vêm, são muito bem-vindos, até porque eles são muito mais do que cor. Eles são proteção, são medicina, são memória, são espíritos vivos. Existem relações diferentes com esses materiais.”

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