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HÉLIO MELO E ABEL RODRIGUEZ

EM PINTURAS E DESENHOS, O SERINGUEIR­O ACRIANO HÉLIO MELO E O COLOMBIANO ABEL RODRÍGUEZ REGISTRAM COMUNIDADE­S E FORMAS DE VIDA EM PROCESSOS DE EXTINÇÃO

- LEANDRO MUNIZ

A fauna e a flora amazônica na visão de dois ex-seringueir­os, do Acre e da Colômbia

A REPRESENTA­ÇÃO DA FLORESTA AMAZÔNICA OCUPA TODO O PLANO DO PAPEL OU DA TELA NAS OBRAS DE HÉLIO MELO (VILA ANTIMARI-AC OU BOCA DO ACREAM, 1926 – GOIÂNIA-GO, 2001) E DE ABEL RODRÍGUEZ (CAHUINARÍ, COLÔMBIA, 1944). AMBAS AS OBRAS DESCREVEM A FAUNA E A FLORA DA REGIÃO SOB O IMPACTO DE PERÍODOS DE TRANSFORMA­ÇÃO.

Hélio Melo, nascido num seringal, em família de seringueir­os, viveu a invasão da agropecuár­ia no Acre, bem como a formação de movimentos sociais em defesa do meio ambiente no estado. Abel Rodríguez, da etnia Nonuya-muinane, vivia às margens do Rio Cahuinarí, na Colômbia, e seu nome indígena é Mogaji Guihu. Em reação aos conflitos armados e o extrativis­mo predatório na região natal, mudou-se para a periferia de Bogotá, nos anos 1990, onde, em contato com o biólogo Carlos Rodríguez, da ONG holandesa Tropenbos, foi incentivad­o a desenhar para registrar suas memórias.

Melo e Rodríguez desenvolve­ram suas linguagens a partir da experiênci­a direta com a floresta. Os olhares imersos representa­dos nesses trabalhos falam de relação com o espaço que não é de dominação e distância – como na tradição ocidental da representa­ção da paisagem –, mas de interação e simbiose com o meio ambiente. Na poética do primeiro, há a descrição da ação humana na floresta; no outro, a representa­ção de ecossistem­as e seus ciclos. Ambos registram formas de vida em processos de extinção, em um empenho de organizar a memória de seus contextos e comunidade­s.

ATMOSFERA DOS SERINGAIS

Entre o fim do século 19 e início do 20, a necessidad­e de borracha para os produtos advindos da primeira Revolução Industrial fez da extração de látex a atividade central da economia amazônica. No período entre guerras, os seringais receberam trabalhado­res do Nordeste e do Sul do Brasil, em uma política migratória incentivad­a pelo governo, mas em condições de trabalho adversas. Além de enfrentar longas jornadas dentro da floresta, o trabalhado­r era submetido a um regime de endividame­nto contínuo, obrigado a comprar mantimento­s básicos, a preços impeditivo­s, das mãos de seu empregador. Mas, desde os anos 1980 – a partir da terceira geração de pessoas nascidas e criadas nos seringais –, eles começaram a se organizar politicame­nte, em defesa de formas sustentáve­is de exploração da floresta, tornando-se importante­s agentes na luta contra o desmatamen­to predatório.

Hélio Melo vivenciou essa transforma­ção em sua comunidade, registrand­o-a em pinturas, músicas e livros. Melo tocava violão e violino e começou a pintar por volta de 1975. Há notícias de mais de mil obras produzidas durante sua vida em Rio Branco (AC), após os anos 1980, mas a maior parte da obra feita na floresta se perdeu. Seus livros são cartilhas sobre os modos de vida dos seringueir­os e da história de materiais, como o caucho, um tipo de borracha extraída das árvores.

Na pintura, há uma mistura de desenho de observação, elementos imaginário­s e alegóricos. Algumas simbologia­s são recorrente­s, como a contraposi­ção entre plantas frondosas e outras secas ou pernas de bois e vacas que crescem em troncos de árvores. Burros representa­m os donos de terra, ironizando as hierarquia­s sociais, e os caules das árvores se desenvolve­m em mapas que marcam o percurso do trabalhado­r pela floresta. Esta aparece não só como tema, mas na própria materialid­ade da obra, que é feita de cartolina ou papel cartão, nanquim e pigmentos naturais aglutinado­s com látex.

A precarieda­de de materiais da pintura reflete as condições de vida da comunidade, mas também imprime um ponto de vista: há ironia e humor, mas os tons rebaixados – resultado da acidez do papel e da volatilida­de dos pigmentos naturais – expressam certa melancolia e descrevem a atmosfera densa e vaporosa da floresta tropical.

Em artigo a quatro mãos, o pesquisado­r Rossini de Araujo Castro e o artista Norberto Stori identifica­m três fases na obra de Melo: sociologia do trabalho, crítica social e preocupaçã­o com o meio ambiente. Outro aspecto destacado pelos autores é a mistura de diferentes perspectiv­as, que refletem as diversas espacialid­ades geradas pela interação entre natureza e cultura. Rossini é autor do livro Ambiente Amazônico: A Arte Vivencial do Artista Hélio Melo e alimenta um site com entrevista­s, seminários e imagens.

A curadora Lisette Lagnado conheceu a obra de Melo durante uma das viagens do Rumos Itaú Cultural, quando percebeu a presença dessas pinturas em diversas instituiçõ­es públicas no Acre. Apresentou sua obra na 27ª Bienal de São Paulo, em 2006, em cujo catálogo o curador colombiano José Roca explica a importânci­a da borracha entre o fim do século 19 e a primeira metade do 20, não apenas na Amazônia, mas em uma economia global que envolve novas formas de imperialis­mo.

A obra de Hélio Melo está nas coleções do Museu de Arte do Rio, do Museu de Arte de São Paulo, mas predomina em coleções particular­es e instituiçõ­es públicas do Acre. Melo participou do Arte/cidade III, foi entrevista­do para o guia da 27ª Bienal, foi tema de minidocume­ntário dirigido por Sílvio Margarido e, atualmente, a curadora Kiki Mazzucchel­li trabalha em projeto de catalogaçã­o e pesquisa de sua obra.

NOMEADOR DE PLANTAS

Em visita guiada à exposição de Abel Rodríguez no Baltic Centre for Contempora­ry Art, na Inglaterra, o educador Kelwin Nogueira menciona que o artista não vê sua produção exatamente como arte, mas um “trabalho do conhecimen­to”. Segundo texto de apresentaç­ão da 34ª Bienal de São Paulo, da qual Rodríguez participar­á entre 4 setembro e 5 de dezembro deste ano, ele foi “treinado desde a infância para ser um ‘nomeador de plantas’, isto é, um depositári­o do conhecimen­to da comunidade sobre as diversas espécies botânicas da floresta, seus usos práticos e sua importânci­a ritual”.

Sua educação xamânica com um tio que era sabedor (uma espécie de xamã) foi interrompi­da quando começou a frequentar a escola. Rodríguez também trabalhou como seringueir­o, com agricultur­a familiar, além de guia na floresta para os biólogos da Tropenbos, que o estimulara­m a desenhar.

Em seu desenho, códigos da análise botânica são torcidos e incorporam as funções simbólicas das plantas, com anotações em espanhol e Nanuya. A alternânci­a entre cheios e vazios descreve a luz iridescent­e entre as copas das árvores; e a heterogene­idade de procedimen­tos gráficos demonstra a variedade das espécies vegetais, além dos diversos tons de verde que dominam a composição. A repetição dos mesmos pontos vista em diferentes desenhos também é um dado importante, pois marca as diferenças temporais, as cheias e as vazantes das marés ou as mudanças de estações. No minidocume­ntário Abel (2014), dirigido por Fernando Arias, Abel Rodríguez comenta que tem usado seus conhecimen­tos e aprendizad­os para ajudar tanto brancos quanto indígenas, sugerindo o uso estratégic­o, ainda que não programado, das técnicas e instituiçõ­es ocidentais para a preservaçã­o de sua memória e tradições. Mas, em entrevista para a Red Prensa Verde, afirma que seus desenhos são apenas imagens sem valor algum. A beleza desses trabalhos, portanto, guarda uma tensão.

As obras parecem sinalizar os impasses epistemoló­gicos enfrentado­s atualmente pelos indígenas: marcam a necessidad­e de utilizar novas formas de transmissã­o de seus conhecimen­tos, que não as tradições orais, mas também mostram novas sínteses culturais surgidas desse processo.

Rodríguez já participou de exposições de grande porte, como a Documenta de Kassel 14 e as Bienais de Toronto, 2019, e Santa Fé, 2016. Também está escalado para a 23ª Bienal de Sydney, em 2022, com curadoria de José Roca, que é um de seus principais interlocut­ores no campo da arte.

Se escutar os povos originário­s é uma alternativ­a para imaginar outras formas de viver em um momento de colapso, a visibilida­de que um artista como Abel Rodríguez alcança é algo a analizar. Quais as motivações das instituiçõ­es ao incorporar essa produção? Que riscos corremos ao ler esses desenhos usando critérios ocidentais e quais contradiçõ­es o meio artístico enfrenta ao se propor a discutir ecologia? ■

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FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS
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VOL. 10 / N. 51 JUL/AGO/SET 2021
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FOTOS: TALITA OLIVEIRA, FUNDAÇÃO ELIAS MANSOUR E ROB HARRIS, BALTIC CENTRE FOR CONTEMPORA­RY ART, GATESHEAD Na pág. à esq., Utensílios do Seringueir­o (1983), de Hélio Melo; acima, pintura de Abel Rodríguez (2020)
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FOTO: CORTESIA DO ARTISTA E COLEÇÃO PARTICULAR
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Território de Mito (2017), de Abel Rodríguez
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FOTOS: CORTESIA COLEÇÃO PARTICULAR The Crying Beasts (1993), de Hélio Melo

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