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A MULHER-SERPENTE E O NIXI PAE

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Do livro Una Shubu Hiwea − Livro Escola Viva, a história do cipó Yube Inu Dua Büse

VENDER TELA, COMPRAR TERRA

O movimento de “contracolo­nização” iniciado pelo Mahku data de 2011, quando o coletivo se formou para resgatar saberes roubados das gerações anteriores, submetidas ao trabalho nos seringais do Acre. “Os Huni Kuin, como diversos outros povos daquela região, sofreram com condições análogas à escravidão durante o ciclo da borracha. Eles eram proibidos de praticar sua cultura e, claro, não eram donos das terras onde viviam”, aponta Dinato, que tem uma dissertaçã­o de mestrado sobre o Mahku. As demarcaçõe­s feitas nos anos 1980 e 1990 teriam trazido alguma justiça, mas sabe-se que no Brasil a restituiçã­o de terra, além de limitada e parcial, está permanente­mente suscetível a invasões. Portanto, além da função de resgate de memória e identidade, há claramente uma visão comunitári­a de futuro nas práticas do Mahku, na medida em que a verba angariada com a venda de murais, telas e painéis é destinada para a aquisição de terras em áreas próximas às áreas indígenas demarcadas no município de Jordão (AC). “Essas terras, que eram originalme­nte dos indígenas, são, através da ocupação ou compra, retomadas”, continua Dinato. “Assim, com seu lema de ‘vender tela, comprar terra’, o Mahku insere-se nessa tradição. Mas é fundamenta­l dizer que essas ocupações e compras não substituem as demarcaçõe­s feitas pelo Estado. As demarcaçõe­s precisam continuar.”

Do livro Una Shubu Hiwea – Livro Escola Viva (2017, Dantes Editora, Itaú Cultural), que reúne estudos médicos com plantas, de pajés Huni Kuin

Dua Busë morava com a família em uma maloca grande. Uma tarde ele saiu pra caçar e encontrou jenipapo na beira do lago.

Tinham muitas caças que estavam comendo o jenipapo, tinha veado, porco, anta... Dua Busë fez tocaia e ficou lá dentro esperando a caça. Lá veio a anta para comer a fruta do jenipapo, quando chegou a anta juntou três frutas e jogou no meio do lago chamando alguém.

Veio uma mulher de dentro do lago toda bonita mesmo, trazendo pra anta uma cerâmica desenhada cheia de mingau de banana para a anta beber.

Mulher e anta namoraram e Dua Busë ficou olhando da tocaia.

Depois a mulher jiboia voltou para dentro do lago e a anta foi embora.

Dua Busë voltou para casa e não conseguiu dormir lembrando da mulher com a anta. No dia seguinte, às 5 da manhã, ele pegou a flecha e voltou para tocaia sem avisar a família. Ele fez a mesma coisa, pegou três sementes de jenipapo e jogou no lago. Saiu uma espuma do rio e logo depois saiu a mulher com o vaso de cerâmica com mingau de banana igual que fez com a anta!

Dua Busë se escondeu na hora, mas depois agarrou ela sem avisar e até o vaso quebrou. A mulher falava:

– Me solta! Quem é você?

Ela começou a se transforma­r em jiboia, transforma­r em murmuru (uma palmeira que tem muito espinho), onça.

Ele não soltou. Finalmente Dua Busë falou:

– Te vi namorando com a anta e quero te namorar também. Ela se transformo­u em gente e falou: – Vou namorar com você se você estiver solteiro.

Dua Busë entrou em um acordo, disse que não tinha mulher e queria casar com ela. A mulher jiboia fez remédio para Dua Busë, pegou medicina para ele, mergulhou com ele e saiu na aldeia do fundo do lago. Encontrou com o peixe arraia que já estava com a lança e o peixe “mandim” com flecha para matar Dua Busë. A mulher falava que não era para matar Dua Busë, que ele era marido dela. Mais à frente encontrara­m puraquê, um peixe que dá choque, que trazia a borduna dele, mas a pedido da mulher o puraquê também se acalmou.

A aldeia do fundo do lago tinha tudo, maloca, roçado, plantas, legumes. Quando chegaram no limite do roçado, a mulher deixou Dua Busë lá esperando para avisar a família que estava trazendo um homem para casar com ela.

Os pais concordara­m e ela foi buscar Dua Busë. Passou tempo e eles geraram dois filhos, uma filha e um filho.

Um dia Huã Karu, sogro de Dua Busë, que estava dentro do lago, começou a preparar ayahuasca. Ele tirou cipó, rainha e foi preparar o chá.

Dua Busë perguntou:

– O que é isso? – É um chá de cura, respondeu o sogro.

Huã Karu preparou o chá à tarde e, à noite, enquanto preparava o ritual, pediu para a filha avisar ao genro para ele não beber. A filha foi avisar ao marido que não era para beber o chá.

– Se ele beber podem acontecer algumas coisas e talvez ele não vai aguentar.

Mas Dua Busë quis beber e finalmente ele bebeu... A esposa pediu para não beber, mas ele bebeu mesmo assim uma dose grande. Quando estava chegando a força Dua Busë começou a agoniar e foi vomitar.

Quando ele estava vomitando, ele começou a ver a jiboia engolindo ele. Ele estava vendo o futuro. Aí, quando o sogro viu falou:

– Bem que eu avisei que não era para ele beber. Chama ele que vou cantar para ele. Quando o sogro começou a cantar, ele viu que a jiboia estava apertando. Dua Busë começou a gritar muito. Até que amanheceu o dia, fizeram medicina para Dua Busë tomar banho. Dua Busë ficou descansand­o até que um dia ele levantou para caçar. A mulher não queria deixar, mas ele foi mesmo assim.

Foi indo até que chegou no largadouro, o lugar onde chega o igarapé que alimenta o lago, e encontrou o Iskï, o bodó encantado.

O Iskï falou: – Seja bem-vindo, meu txai! Queria encontrar contigo mesmo.

Iskï estava sem cabelo e sem o rabo.

– Olha, txai, você está vivendo bem com a mulher jiboia; a sua mulher está com os seus filhos com fome. Eles me encontrara­m, tiraram meu nea rani, o cabelo do rabo, então melhor você voltar para sua terra, cuidar da sua família, porque eles estão sofrendo muito. Vem, vou te ajudar! O Iskï foi e pegou a medicina, colocou no olho dele e falou:

– Pega meu cabelo e fecha o olho.

Saiu com ele descendo o rio até chegar no roçado da família de Dua Busë. Chegando lá, o Iskï jogou ele na terra. Quando virou, olhou e reconheceu o roçado da família. Ele foi entrando na terra dele... a família começou a gritar avisando que Dua Busë estava voltando, veio todo mundo, perguntand­o e levando ele para txitüte, a pequena rede de pajé, e ele ficou deitado lá, contou a história que aconteceu com ele e a família pediu para ele não sair da casa com medo da jiboia. Ele ficou vivendo com a família um tempo e depois de um tempo foi caçar.

A esposa do lago estava procurando ele com saudade e raiva. Ele falou que ia matar algumas coisas para fazer caçada, ele não quis ir pelo lago e foi pelo lado da terra, viu o pássaro kushu, cujubim, e deu flechada. A flecha dele caiu na beira do lago, no sangrador do lago, aí flechou de novo e foi lá de novo. Foi catar as flechas no lago e quando chegou para pegar as flechas encontrou com Bari Siri Ika, filha dele.

Depois chegou a filha pequena e mordeu o dedão do pé dele. “Sirï sirï sirï...” Ele não fez nada, ficou espantado, olhando. Com o canto da filha chegou o filho maior e atacou ele comendo até o joelho. Ele não falou nada. Daqui a pouco vem a mulher, tinha uma árvore no meio do lago. Dua Busë estava com o braço aberto pendurado na árvore e a mulher comeu até o peito. Aí Dua Busë começou a gritar. Chamando os seus parentes da comunidade.

– Venham, meus parentes, a jiboia tá me engolindo! Seguraram Dua Busë e conseguira­m tirar ele. Ele ficou com o corpo mole, ficou na rede e falou para seu cunhado:

– Quando eu morrer, me enterra. Passando seis meses pode me procurar na minha sepultura. Na parte direita vou virar cipó e na parte esquerda vou virar rainha. Tira o cipó, 1 metro mais ou menos, pega um pau e bate até sair a casca e depois cozinha. Cantando eu fico dentro do cipó e explico para você. Foi explicando para o cunhado dele enquanto morria. Enterraram, passou seis meses e o cunhado dele foi visitar a sepultura. Nessa hora tinha nascido o cipó, nascido rainha. Tirou os dois juntos e fez como ele havia explicado. Fez o nixi pae, tomou e veio a miração. Teve muita explicação. Mostrando o futuro, presente e passado e a verdade. Assim nasceu o nixi pae e essa é a nossa história. (Una Shubu Hiwea, 2017, s.p)

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