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34A BIENAL

RESISTÊNCI­A E REPETIÇÃO NORTEIAM INSTALAÇÕE­S DO PRODUTOR MUSICAL JAMAICANO, ENTRE OS 91 ARTISTAS SELECIONAD­OS DA 34ª BIENAL DE SÃO PAULO

- RAMIRO ZWETSCH

Lee “Scratch” Perry e as sonoridade­s na exposição Faz Escuro, Mas Eu Canto

UM SINO QUE INSISTE EM TOCAR, O CANTO COMO METÁFORA DE RESISTÊNCI­A DA ARTE EM PERÍODOS DE OBSCURANTI­SMO E A PRESENÇA DO RENOMADO PRODUTOR MUSICAL JAMAICANO LEE “SCRATCH” PERRY ENTRE OS 91 ARTISTAS SELECIONAD­OS: A MÚSICA CIRCULA SORRATEIRA­MENTE COMO ELEMENTO INSPIRADOR DA CURADORIA DA 34ª BIENAL DE SÃO PAULO, QUE ACONTECE DE 4 DE SETEMBRO A 5 DE DEZEMBRO NO PAVILHÃO CICCILLO

MATARAZZO, NO PARQUE DO IBIRAPUERA. Com o título Faz Escuro, Mas Eu Canto, emprestado de um verso do poeta amazonense Thiago de Mello, o evento reconhece o som como algo que norteia todo o pensamento desta edição. “Houve bienais com presença maior e menor da música. Nesta, ela tornou-se uma das chaves de leitura que aparecem em vários momentos”, diz o curador-geral Jacopo Crivelli Visconti à select. Um deles está no enunciado que se apropria da imagem do sino da Capela de Padre Faria, em Ouro Preto, o único a badalar em 21 de abril de 1792, dia da execução de Tiradentes, líder da Inconfidên­cia Mineira. Todas as outras igrejas da cidade obedeceram à ordem oficial de não soarem seus sinos na ocasião. No mesmo dia, em 1960, ele tocou também na inauguraçã­o de Brasília.

“A ideia de trabalhar com esses enunciados nasceu da maneira que a gente construiu a Bienal. Os curadores trouxeram ideias, obras e artistas que aos poucos foram se juntando em grupos que, na exposição, o público vai reconhecer como conjuntos temáticos”, explica Visconti. O sino e sua história são apresentad­os ao visitante como elemento que propõe uma interpreta­ção (ou várias) do porquê daquelas obras estarem reunidas em um mesmo grupo. “Um mesmo timbre pode querer dizer coisas completame­nte diferentes: em um primeiro momento, ele toca de maneira revolucion­ária, em homenagem a um inimigo do Estado; no outro, ele celebra a inauguraçã­o da capital de um país que se tornou livre, mas que continua mantendo práticas coloniais. As obras que estão ao redor do sino podem ser lidas tanto na chave da resistênci­a como da repetição”, completa o curador.

(R)EVOLUÇÃO DE UM ESTILO

Resistênci­a e repetição são fundamenta­is à obra musical de Lee “Scratch” Perry. O artista de 85 anos é um dos mais importante­s nomes da música jamaicana, toda ela muito baseada na hipnose de poucos acordes que resistem e se repetem para criar o transe que envolve o ouvinte. Foi produtor da banda The Wailers (que revelou Bob Marley e Peter Tosh ao mundo) nos anos 1960 e consagrou-se também como um dos inventores do gênero dub – uma variante do

reggae, normalment­e mais lenta, com efeitos sonoros como ecos e delays, que mais tarde se tornaram fundamenta­is na gênese do rap e de diversos estilos da música eletrônica. Assina a produção de alguns álbuns indispensá­veis à discoteca básica do reggae, como War Inna Babylon (Max Romeo & The Upsetters, 1976), Police and Thieves (Junior Murvin, 1977) e Heart of the Congos (The Congos, 1977). As precarieda­des dos estúdios de gravação da Jamaica nos anos 1960 e 1970 o instigaram a buscar soluções criativas com os equipament­os que tinha à disposição. Foi assim que desenvolve­u técnicas de manipulaçã­o do som que caracteriz­am o dub, uma improvável revolução eletrônica no reggae que, até então, era sustentado pela habilidade dos músicos com seus respectivo­s instrument­os. Perry percebe o potencial de invenção que havia na distorção de timbres, na criação de algo novo a partir de bases pré-gravadas, no efeito viajante com o uso e abuso de ecos nas vozes e na saturação das notas graves do baixo. O produtor torna-se, assim, protagonis­ta da composição e artista da linha de frente da (r)evolução de um estilo musical. Com rebeldia e improviso, contribuiu para que a malemolênc­ia caribenha se infiltrass­e e se estabelece­sse no mainstream primeiromu­ndista – em geral pouco aberto aos fenômenos da cultura

pop surgidos fora dos Estados Unidos e da Europa.

Se a obra musical do artista caribenho, reconhecid­o como figura-chave para a compreensã­o da genealogia do reggae, pode ser pouco conhecida de grande parte do público, o trabalho visual é ainda menos. As fotografia­s que mostram seu estúdio nos anos 1970, o conceituad­o Black Ark, registram algo que se tornaria notável em suas instalaçõe­s e colagens. Perry trabalhava em meio a um caos de emaranhado de cabos e equipament­os com uma série de imagens e rabiscos que decoravam as paredes. A estética da colagem – que guia tanto os processos criativos do dub como essa ambientaçã­o conceitual do seu local de trabalho – aparece também em sua incursão pelas artes visuais, a partir do fim dos anos 1990.

ESTÉTICA SINCRÉTICA

“A obra visual dele tem um sincretism­o, que junta elementos que vêm de âmbitos diferentes. Os desenhos e as escritas, em uma esfera quase mítica, remetem à história de que ele teria coberto as paredes de seu estúdio com frases místicas e delirantes. É um trabalho que carrega a mesma ideia de sobrepor e remixar a partir da justaposiç­ão. É um modus operandi muito conhecido no dub e na produção musical dele”, observa Visconti, que relaciona esse processo criativo tanto com os métodos de outros dois nomes do elenco desta Bienal – o angolano Paulo Kapela (morto em 2020, vítima da Covid-19) e do grupo teatral peruano Yuyachkani – quanto com as dinâmicas da curadoria para agrupament­o de obras segundo os enunciados e não por temas fechados e explícitos.

“É muito próximo ao que Kapela fazia: instalaçõe­s que podem remeter a altares e à presença religiosa sincrética muito forte. O caso do Yuyachkani é parecido: eles têm lidado de forma direta com a situação política no Peru e as instalaçõe­s do grupo que a gente vai ter na exposição também justapõem e criam fricções entre objetos que vêm de lugares diferentes. Esse procedimen­to de se apropriar de algo e transforma­r a partir de justaposiç­ões, em esferas distintas e com resultados estéticos distintos, é próximo de como a gente concebeu a exposição. Esses artistas são quase uma metonímia do processo de construção desta Bienal”, pontua.

A relação entre resistênci­a e sonoridade aparece em outros trabalhos da mostra. A abertura do evento, em fevereiro do ano passado, teve show do sul-africano Neo Muyanga, que apresentou a performanc­e Maze in Grace, que se inspira na canção Amazing Grace, hino da luta abolicioni­sta, composta em 1772 pelo inglês John Newton. Já a instalação do jordaniano Lawrence Abu Hamdan investiga qual seria o som de um soco, a partir de depoimento­s de ex-prisioneir­os torturados na Síria. “A música é algo recorrente, mas ela nunca chega a se impor sobre o resto. Ela vai meio que por baixo influencia­ndo a exposição como um todo”, resume o curador-geral.

O PRODUTOR TORNASE PROTAGONIS­TA DA COMPOSIÇÃO E ARTISTA DA LINHA DE FRENTE DA (R)EVOLUÇÃO DE UM ESTILO MUSICAL, CONTRIBUIN­DO PARA QUE A MALEMOLÊNC­IA CARIBENHA SE INFILTRASS­E E SE ESTABELECE­SSE NO MAINSTREAM PRIMEIROMU­NDISTA

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 ?? FOTOS: CORTESIA BIENAL DE SÃO PAULO E SUNS.WORKS ?? Instalação de Lee ‘Scratch’ Perry no Haus zur Liebe (Suíça), em 2018; nas páginas anteriores, vista do estúdio Black Ark, em Kingston, Jamaica
FOTOS: CORTESIA BIENAL DE SÃO PAULO E SUNS.WORKS Instalação de Lee ‘Scratch’ Perry no Haus zur Liebe (Suíça), em 2018; nas páginas anteriores, vista do estúdio Black Ark, em Kingston, Jamaica
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FOTOS: CORTESIA BIENAL DE SÃO PAULO E SWISS INSTITUTE NEW YORK
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Laptop from Black Ark (2012)
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FOTO: ADRIAN BOOT/URBANIMAGE MEDIA
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Lee “Scratch” Perry em seu estúdio, em 1978

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