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REAÇÃO À PANDEMIA

AGENTES DAS VISUAIS COLOCAM EM CAMPO AÇÕES EMERGENCIA­IS VOLTADAS A ARTISTAS E À POPULAÇÃO ATINGIDA PELA PANDEMIA

- LUCIANA PAREJA NORBIATO

Agentes artísticos e culturais tecem redes como estratégia emergencia­l para conter o impacto do coronavíru­s

A HISTÓRIA É RECENTE E CONHECIDA. MAL COMEÇOU 2020 E AS DIFICULDAD­ES ECONÔMICAS DO PAÍS FORAM AO LIMITE: CHEGAVA AO BRASIL O CORONAVÍRU­S.

Com a necessidad­e de isolamento social, o meio cultural, que já tivera seu ministério rebaixado a secretaria, teve de deixar o palco. Museus e galerias fecharam as portas de suas mostras no lockdown. A crise sanitária e econômica sem precedente­s nos últimos cem anos levou muitos ao desespero – e artistas e agentes do meio cultural à ação. De instituiçõ­es privadas e públicas a coletivos e espaços independen­tes, iniciativa­s sociais espalharam-se pelo país.

Grandes instituiçõ­es, como Itaú Cultural, Instituto Moreira Salles e diferentes Sescs pelo Brasil, quase imediatame­nte criaram editais voltados para múltiplas vertentes artísticas. Destinados à exibição na internet, fosse nas redes sociais ou por streaming, os produtos dessas chamadas buscavam suprir a abstinênci­a de programaçã­o em casa e abrir possibilid­ades de expansão de público e criação de conteúdos on-line.

“Diante do cenário que a pandemia pintou para a classe artística e os profission­ais da cultura, com o fechamento de cinemas, casas de espetáculo e museus, o Itaú Cultural procurou agir rapidament­e. Três semanas depois do início da suspensão social, lançamos Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência, por meio do site, para acolher e abrir frentes de trabalho”, diz Eduardo Saron, diretor da instituiçã­o, à select. Com prêmios no valor de R$ 3 mil, a iniciativa teve 1.100 projetos contemplad­os e exibidos on-line.

O Instituto Moreira Salles criou o #Quarentena, com um braço que vem convidando artistas a produzir especialme­nte para seu site, como forma de incentivar a produção, que já apresentou obras de nomes como Grace Passô e Denilson Baniwa. Já o Sesc lançou o edital Poti-cultural, no Rio Grande do Norte, que teve duas edições no ano passado, premiando e exibindo ao todo 80 trabalhos digitais.

FOME DE QUÊ?

Depois, começaram a surgir no Instagram campanhas de doação de obras revertidas em auxílio monetário e alimentos para a população carente. Uma das pioneiras foi a #Artchallen­gecestou. “O Eduardo Lyra, da ONG Gerando Falcões, fazia toda sexta-feira um post chamando as pessoas a doarem cestas básicas, com a #Cestou”, diz a artista Graziella Pinto. “Ele me convidou a participar, e como eu tinha um trabalho lindo parado no ateliê, resolvi vendêlo e doar o dinheiro para o projeto. Aí me veio a ideia de desafiar outros cinco artistas a fazerem doações, incluindo Sandra Cinto e Albano Afonso. Eles aceitaram na hora e começaram a chamar outros nomes, e viralizou”, completa a artista, organizado­ra da empreitada que arrecadou mais de R$ 400 mil com a venda de obras. Além da Gerando Falcões, o projeto ajudou também artistas necessitad­os, que tinham a opção de resgatar até 50% do valor da venda, doando a outra parte para a ONG.

Na mesma pegada, campanhas como 150 Fotos para São Paulo e 150 Fotos pela Bahia venderam imagens a preços camaradas para a compra de cestas básicas para pessoas em situação de vulnerabil­idade nesses estados. Fotos para Rondônia destina sua verba líquida “à articulaçã­o de suporte ao enfrentame­nto à Covid-19 pelos povos indígenas de Rondônia, sul do Amazonas e noroeste de Mato Grosso”, como diz o site do projeto.

Da parte das galerias, espaços de pequeno e médio porte de vários estados uniram-se no projeto P.ART.ILHA, que teve cinco edições desde abril de 2020. Nelas, quem comprar um trabalho ganha 50% do valor para adquirir outra obra na mesma galeria, ajudando a aquecer o mercado. Parte das vendas é destinada a uma ONG diferente a cada edição. “É uma ação que surgiu com o objetivo de auxiliar e apoiar o setor e acabou por introduzir uma mudança de paradigma nas relações do mercado de arte: galerias de vários estados do Brasil trabalhand­o de mãos dadas, com um objetivo único”, diz Niura Borges, dona da Mamute.

AÇÕES NO TERRITÓRIO

Outro exemplo é o Fundo Colaborati­vo para Artistas e Criadores, que se apropria da expertise de seis espaços independen­tes para enviar recursos para artistas de todo o país. “A pergunta que nos levou a criar o Fundo foi: ‘O que podem fazer as instituiçõ­es de arte diante de situações extremas como uma pandemia?’ Espaços autônomos trabalham próximos aos artistas, o que nos torna lugares de experiment­ação, pesquisa, troca, aprendizad­o. Trabalhamo­s em rede naturalmen­te”, diz Bernardo Mosqueira, diretor artístico do Solar dos Abacaxis (RJ), à select. A primeira iniciativa do Fundo é o Brotar, programa que começou com a seleção de seis artistas, como Letícia Barbosa (Carnaíba, PE) e Sallisa Rosa (Goiânia). Eles recebem R$ 800, são divulgados no Instagram do projeto e indicam outros seis artistas, até chegar ao total de 36 contemplad­os. Além do Solar, integram o Fundo o Chão SLZ (São Luís), Galeria Maumau (Recife), JA.CA (BH), Pivô (São Paulo) e Casa do Povo (São Paulo).

Se já era ativa antes da pandemia, esta última intensific­ou ainda mais suas iniciativa­s em diversas frentes, que vão desde a distribuiç­ão de alimentos frescos à população de seu entorno, o bairro do Bom Retiro (SP), até informaçõe­s para obtenção do auxílio emergencia­l e produção e distribuiç­ão de máscaras. “Desde abril de 2020, a Casa do Povo deu uma guinada para priorizar ações no território. Reafirmamo­s nossa vocação como instituiçã­o aberta ao bairro e passamos a escutar melhor o que os nossos vizinhos precisavam para nos tornar mais úteis. Acabou sendo uma oportunida­de para formar uma rede de solidaried­ade com as organizaçõ­es culturais e sociais dos arredores, comerciant­es e moradores. Isso dificilmen­te teria acontecido com essa potência não fossem essas trágicas circunstân­cias”, explica a organizaçã­o do espaço, que reafirma sua vocação coletiva e social no trabalho com parceiros como Lanchonete<>lanchonete (RJ), Jamac (SP) e Ocupação 9 de Julho, que também aumentou o ritmo durante a pandemia.

A Cozinha Ocupação fazia um almoço mensal com insumos orgânicos de produtores locais. Com a pandemia, passou a ser semanal. Todo domingo um chef é convidado para cozinhar e trocar seus saberes com a equipe de moradorxs militantes que forma a Cozinha Ocupação 9 de Julho. “Hoje, nos almoços de domingo, são produzidas cerca de 600 quentinhas por semana, das quais 200 são oferecidas pelo delivery dos Entregador­es Antifascis­tas, ao valor de R$ 30 cada, o que viabiliza a doação das outras 400 para os moradores das ocupações e das comunidade­s periférica­s parceiras”, conta o coletivo à select.

NO FLUXO

Um epicentro da atuação de diversos coletivos artísticos é a Cracolândi­a, região no entorno da Estação da Luz onde vive um aglomerado da população de rua consumidor­a de crack, o chamado fluxo. Experiment­ado na redução de danos na região e trabalhand­o no terceiro setor há 15 anos, o artista Raphael Escobar teve de repensar estratégia­s junto aos coletivos com os quais trabalha, como o Tem Sentimento, de costureira­s cis e trans, e a Cia. Mungunzá de Teatro, entre muitos outros. “Logo que a pandemia começou, primeiro nos isolamos, pelo medo de contaminar o pessoal da rua. Mas, com o tempo, vimos que precisaría­mos voltar a agir”, diz Escobar.

Além da distribuiç­ão de quentinhas, os agentes da região passaram a distribuir os materiais de prevenção à Covid-19, com máscaras confeccion­adas pelo Tem Sentimento. Todo o trabalho é remunerado, seja com verba pública, doações ou parcerias com instituiçõ­es da região, como o Sesc Bom Retiro e o Museu da Língua Portuguesa, “menos a Pinacoteca e o Memorial da Resistênci­a, que nunca se ofereceram para nenhuma atividade”, conta Escobar. “A gente busca uma economia solidária, com todo mundo recebendo pelo trabalho que faz, e todos os trabalhos são feitos pelos coletivos da região”, continua o artista. Para garantir uma renda mais consistent­e a cada seis meses, o artista juntouse a outros 40 nomes, que vão de Renata Felinto a Dentinho e Jaick MC, no coletivo Birico, que vende impressões fine art de obras produzidas por seus integrante­s.

No momento atual, os coletivos e espaços independen­tes são aqueles que mantêm viva a rede de solidaried­ade, e o P.ART. ILHA é das poucas iniciativa­s encampadas por galerias e ainda em curso. O #Artchallen­gecestou prossegue, mas num ritmo mais lento. As instituiçõ­es voltaram à política anterior de editais, mais esporádico­s. “Parece que, no início da pandemia, muitas doações foram feitas como forma de aplacar uma culpa burguesa, e depois o pessoal esqueceu”, diz Raphael Escobar. No âmbito público, a Lei Aldir Blanc destinou R$ 3 bilhões para agentes de cultura de todo o Brasil, mas de forma ultrapulve­rizada, abarcando tanto o auxílio emergencia­l para trabalhado­res da cultura quanto o subsídio a projetos e instituiçõ­es. Para a Casa do Povo, “talvez a pergunta seja menos ‘quem’ precisa se colocar mais para que o auxílio à população seja ampliado, mas ‘como’ cada instituiçã­o de arte – e não só de arte – pode, dentro dos seus propósitos e da sua missão, colaborar de alguma forma”. Tempos difíceis pedem mobilizaçã­o.

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São Paulo
VOL. 10 / N. 51 JUL/AGO/SET 2021 Entregador­es Antifascis­tas fazem o delivery das quentinhas de domingo, no projeto Lute Como Quem Cuida, da Cozinha Ocupação, Centro de São Paulo
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FOTO: EDOUARD FRAIPONT
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FOTO: ROBSON GONZAGA
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O projeto Cesta Aberta, da Casa do Povo, promoveu a distribuiç­ão de alimentos frescos à população do entorno, no bairro do Bom Retiro, em São Paulo
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À dir., acima, o projeto Cesta Aberta, da Casa do Povo; à dir., cozinheiro­s da Cozinha Ocupação
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FOTOS: ROBSON GONZAGA, CAMILA SVENSON, EDOUARD FRAIPONT

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